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Na memória coletiva moçambicana, poucas feridas do período pós-independência são tão profundas quanto as causadas pelo escândalo das dívidas ocultas. Este episódio, que teve início entre 2013 e 2014, não foi apenas um crime económico de proporções colossais, mas também um sintoma visível da podridão institucional instalada nas entranhas do Estado. Com contratos fraudulentos que envolveram empréstimos no valor de 2,2 mil milhões de dólares dos bancos VTB e Credit Suisse, supostamente para beneficiar empresas públicas — Proindicus, EMATUM e MAM — o esquema se revelou, na verdade, um autêntico saque promovido por elites estatais bem posicionadas.
Hoje, os protagonistas deste drama nacional — Gregório Leão, Ndambi Guebuza, António Carlos do Rosário, Ângela Leão e outros — estão novamente em liberdade. Uma liberdade que não escandaliza por ser jurídica, mas por ser moralmente ofensiva. A pergunta que paira é: o julgamento foi mesmo para fazer justiça ou apenas uma encenação para o mundo ver?
A resposta parece cada vez mais clara. O julgamento, que chegou a ser transmitido em directo, foi vendido ao público como o símbolo de uma nova era de responsabilização. Contudo, os factos mostram que se tratou de uma peça cuidadosamente roteirizada para acalmar os credores internacionais, sobretudo o FMI e o Banco Mundial. Esses organismos haviam suspendido a ajuda externa ao país, exigindo responsabilização criminal como pré-condição para a reabertura das linhas de crédito.
Foi nesse contexto que se assistiu a um dos maiores espetáculos mediáticos do continente africano: um tribunal improvisado, longas audições, e o aparente rigor da justiça. No entanto, bastou o interesse externo ser satisfeito, e os holofotes internacionais se apagarem, para que tudo retornasse ao normal. Os condenados foram gradualmente saindo da prisão, e a narrativa da punição exemplar foi sendo substituída por justificações técnicas e decisões judiciais controversas. Tudo indica que o sistema apenas cedeu momentaneamente, para em seguida reforçar as muralhas da impunidade.
O que está em causa aqui não é apenas o dinheiro desviado, mas o modelo de governação que se cristalizou em Moçambique. A Frelimo, partido no poder desde a independência, demonstrou neste episódio uma elasticidade moral alarmante. Fez dos seus quadros mártires voluntários para preservar a legitimidade institucional diante dos parceiros internacionais, garantindo-lhes, posteriormente, retorno à vida de conforto. Essa coreografia de sacrifício e recompensa representa um tipo de racionalidade política profundamente enraizada: o crime compensa, desde que se mantenha a fidelidade partidária.
As consequências sociais são devastadoras. Os recursos desviados poderiam ter sido aplicados em saúde, educação, infraestrutura básica e criação de empregos. Em vez disso, serviram para financiar um ciclo de enriquecimento ilícito que mantém as elites no topo e empurra milhões de moçambicanos para a margem da sobrevivência. A dívida, ainda ativa, recai hoje sobre todos os contribuintes — muitos dos quais não têm sequer acesso a água potável ou hospitais funcionais.
Neste ambiente de desilusão generalizada, o Jornal Preto e Branco realizou um inquérito na sequência da libertação de presos das dívidas ocultas: O que acha que o Estado Moçambicano devia reaver parte dos bens saqueados?” De 36 respostas recolhidas, 80,6% disseram “Sim”, 16,7% “Não”, e 2,8% afirmaram “Sem opinião”. Esses números, embora simbólicos, ecoam um sentimento nacional: a justiça em Moçambique está em falência técnica e ética.
O resultado do inquérito não surpreende. Vivemos um momento em que a confiança nas instituições está esgotada. O Executivo, o Legislativo e o Judicial são percebidos como tentáculos de um mesmo corpo político, manietado por interesses privados e cálculos eleitorais. A separação de poderes, princípio basilar da democracia, tornou-se um conceito abstracto, repetido em discursos e documentos oficiais, mas raramente praticado.
Em países onde o Estado é forte, mas a democracia é fraca, a justiça não é cega, ela enxerga quem são os seus aliados. A liberdade condicional dos implicados no caso das dívidas ocultas, aliada à ausência de medidas reais para reaver os activos desviados, mostra que a punição foi mais simbólica do que substancial. Prendeu-se para acalmar; libertou-se para preservar.
A liberdade dos envolvidos também lança uma sombra sobre o papel das instituições internacionais. Se, por um lado, o FMI e o Banco Mundial foram decisivos ao cortar o financiamento, por outro, a sua reaproximação posterior, sem exigir reparação real dos danos, envia uma mensagem ambígua. Afinal, bastou a ilusão de justiça para que as portas do financiamento voltassem a abrir-se. Isso legitima, na prática, a lógica da encenação judicial como moeda de troca.
Além disso, há uma questão moral e simbólica: o que significa para um jovem moçambicano ver que o desvio de milhões de dólares não só pode sair impune, como também garantir prestígio e conforto posterior? Que mensagem se transmite a uma geração que cresce em meio ao desemprego, violência e precariedade? Num país onde o mérito é excepção e o compadrio regra, o cinismo torna-se a única filosofia de sobrevivência.
Talvez a maior tragédia não seja o roubo em si, mas a normalização do roubo. Moçambique está a tornar-se um laboratório de como a corrupção pode ser institucionalizada sob a capa de legalidade. As audiências públicas, as sentenças, os relatórios, tudo cuidadosamente redigido, criam uma aparência de rigor que disfarça o esvaziamento do próprio conceito de justiça.
O caso das dívidas ocultas não está encerrado. Ainda há contas por ajustar, memórias por recuperar e bens por devolver. Mas enquanto os rostos da corrupção forem recebidos em liberdade com a mesma pompa com que antes exerciam cargos públicos, a ferida continuará aberta. E a cicatriz, quando finalmente surgir, será o testemunho silencioso de um país que soube tudo, viu tudo, mas optou por não fazer nada.

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