
O primeiro informe anual de um Presidente da República reveste-se sempre de um significado político particular. Não se trata apenas de um balanço administrativo; é, acima de tudo, um acto simbólico fundador de um ciclo governativo. É o momento em que o Chefe de Estado define o tom da sua governação, clarifica prioridades, assume heranças difíceis e estabelece um pacto mínimo de confiança com a sociedade. Num país como Moçambique, marcado por crises recorrentes de legitimidade política, desigualdades estruturais profundas e um histórico prolongado de governação contestada, este momento assume uma densidade histórica acrescida.
O primeiro informe anual do Presidente Daniel Chapo revelou-se, contudo, uma oportunidade desperdiçada. Em vez de um discurso de elevação institucional, de reconciliação substantiva e de ruptura clara com práticas que conduziram o país à situação actual, o que se ouviu foi uma narrativa defensiva, auto-justificativa e profundamente polarizadora. O discurso presidencial não contribuiu para sarar feridas abertas no tecido social, antes aprofundou clivagens, deslocou responsabilidades e alimentou uma leitura perigosa da relação entre o Estado e a cidadania.
Um dos aspectos mais preocupantes do informe foi a centralidade atribuída às manifestações como explicação quase exclusiva para os fracassos governativos e para a estagnação económica. Ao adoptar esta abordagem, o Presidente incorre num erro de diagnóstico evidente. As manifestações não são a causa dos problemas estruturais de Moçambique; são o seu sintoma mais visível. Elas emergem de um contexto prolongado de desemprego estrutural, empobrecimento generalizado, ausência de mobilidade social, descrédito das instituições eleitorais e sensação persistente de exclusão política. Tratar o sintoma como causa revela fragilidade analítica e compromete qualquer estratégia séria de governação.
Há também um erro político claro nesta escolha narrativa. Ao apresentar os manifestantes como entrave à governação, o Presidente posiciona-se simbolicamente contra uma parte significativa da população, negando a legitimidade constitucional do protesto e reduzindo o dissenso social a um acto de sabotagem nacional. Um Chefe de Estado não governa apenas para os que o aplaudem; governa, sobretudo, para os que questionam, discordam e exigem respostas. Ao falhar neste ponto, o Presidente abdica da sua função unificadora.
Mais grave ainda é o erro ético e democrático subjacente a este discurso. A linguagem utilizada, directa ou indirectamente acusatória, contribui para a criminalização do dissenso e para a normalização de uma lógica de amigo e inimigo no espaço público. Num país com um passado recente de violência política, esta opção discursiva não é neutra nem inocente. Ela carrega riscos reais de aprofundamento do ódio social e de legitimação de práticas repressivas.
Ao imputar às manifestações a responsabilidade central pela crise económica e social, o Presidente promove uma amnésia política selectiva. Os problemas que hoje sufocam Moçambique não nasceram no último ano, nem nos últimos meses. São o resultado acumulado de décadas de má governação, corrupção sistémica, endividamento irresponsável, captura do Estado por elites partidárias e económicas e ausência de políticas públicas orientadas para o desenvolvimento inclusivo. A delapidação dos cofres públicos, os escândalos financeiros nunca plenamente esclarecidos e a erosão da confiança interna e externa precedem largamente este mandato.
A recusa em reconhecer de forma clara e inequívoca esta herança pesada impede o Presidente de se afirmar como agente de mudança. Mais do que isso, ao silenciar as responsabilidades dos governos cessantes — muitos deles compostos pelas mesmas figuras políticas que continuam a ocupar posições centrais no aparelho do Estado — o Presidente transmite à sociedade um sinal inequívoco de continuidade. A promessa implícita de renovação esvazia-se quando confrontada com a realidade da reprodução das mesmas práticas, dos mesmos actores e das mesmas lógicas de poder.
A aposta reiterada nas elites políticas e administrativas que estiveram associadas às decisões que conduziram o país à crise actual bloqueia qualquer tentativa séria de renovação política. A ausência de responsabilização e de renovação substantiva nos centros de decisão alimenta o cepticismo social e reforça a percepção de que o Estado funciona como um espaço fechado, impermeável à crítica e resistente à mudança. A lógica de autopreservação partidária sobrepõe-se, mais uma vez, à lógica do interesse nacional.
Esta continuidade torna-se ainda mais evidente na contradição flagrante entre o discurso oficial de reconciliação e as práticas concretas do Estado. Enquanto o Presidente apela ao diálogo e à pacificação nacional, vários cidadãos permanecem detidos na sequência das manifestações, muitos deles sem acusação formal, sem julgamento célere e em condições que ferem princípios básicos de dignidade humana. A recusa em conceder indulto a estes cidadãos, sobretudo na ausência de culpa formal comprovada, mina profundamente a autoridade moral do discurso presidencial.
Não pode haver reconciliação verdadeira enquanto a liberdade for utilizada como instrumento político. Não pode haver diálogo genuíno quando uma das partes fala a partir da prisão. Esta dissonância entre palavra e prática não é um detalhe secundário; é o centro da crise de confiança que hoje separa o Estado da sociedade.
O processo de diálogo nacional anunciado pelo Presidente, apesar de envolver figuras proeminentes, corre o risco de se transformar num exercício de encenação política se não enfrentar as causas profundas da crise pós-eleitoral, se não reconhecer a legitimidade do descontentamento popular e se não produzir medidas concretas de justiça, reparação e inclusão. Um diálogo que não liberta, não repara e não transforma é percebido como instrumento de gestão da imagem do poder, e não como mecanismo de transformação social.
Outro elemento que marcou negativamente este primeiro ano foi a percepção de deslocamento das prioridades presidenciais. A intensa actividade externa, com múltiplas deslocações internacionais, contrastou com a gravidade da crise interna, que exigia presença constante, escuta activa e liderança próxima. Independentemente dos valores financeiros envolvidos, o problema central é político e simbólico: num contexto de sofrimento generalizado, a ausência prolongada do Chefe de Estado do espaço interno é interpretada como distanciamento da realidade vivida pela maioria dos cidadãos.
Paralelamente, o país assistiu ao encerramento ou retração de unidades económicas estratégicas, à saída de empresas relevantes e à redução do envolvimento de parceiros internacionais históricos. Estes fenómenos não podem ser explicados exclusivamente pelas manifestações. Eles reflectem um ambiente de incerteza política, fragilidade institucional e falta de previsibilidade governativa. A confiança, elemento central para qualquer economia, constrói-se com estabilidade, coerência e respeito pelas regras. Nenhum discurso que transfira responsabilidades para a sociedade conseguirá restaurá-la.
Ao fim do seu primeiro ano de governação, o Presidente ainda não conseguiu afirmar-se como Chefe de Estado de todos os moçambicanos. O discurso, as escolhas políticas e as omissões sugerem uma governação orientada prioritariamente para a consolidação do apoio interno do seu campo partidário, tratando a crítica como hostilidade e o dissenso como ameaça. Esta lógica é incompatível com a construção de uma democracia inclusiva, madura e resiliente.
Este cartão vermelho não é um acto de hostilidade pessoal nem de rejeição da instituição presidencial. É um acto de alerta democrático fundamentado. O primeiro ano de governação revelou sinais preocupantes de arrogância narrativa, continuidade sistémica, negação de responsabilidades históricas e incoerência entre discurso e prática. Ainda existe tempo para corrigir o rumo, mas isso exigirá ruptura real com o passado, humildade política, respeito efectivo pelos direitos fundamentais e coragem para governar para além das fronteiras partidárias.
Sem essa mudança profunda, o risco é evidente: mais um ciclo presidencial marcado pela frustração das expectativas, pelo aprofundamento do fosso entre o Estado e a sociedade e pela perpetuação de um modelo de governação que já demonstrou o seu esgotamento histórico. Este cartão vermelho não encerra o debate. Pelo contrário, abre-o, em nome da democracia, da dignidade cidadã e do futuro de Moçambique.

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