Sinistralidade na N4: Entre o Lucro e Luto

A Estrada Nacional 4 (EN4), que liga Maputo à fronteira de Ressano Garcia, tem registado um aumento preocupante de acidentes graves nos últimos anos, sobretudo envolvendo camiões de grande tonelagem que transportam minérios da África do Sul para o Porto de Maputo. Entre os trechos mais críticos destaca-se a zona de 3 de Fevereiro, na Manhiça, onde os acidentes não apenas ceifam vidas, mas também desestruturam famílias e afectam comunidades inteiras.

Dados preliminares da Polícia de Trânsito de Maputo apontam para um crescimento de cerca de 18% em acidentes graves na EN4, comparativamente ao mesmo período do ano passado. A faixa horária de maior incidência coincide com o tráfego intenso de veículos pesados, entre as 16:00 e a meia-noite, evidenciando uma sobreposição crítica entre o transporte de mercadorias de longo curso e a circulação de veículos ligeiros, que partilham a mesma via.

Para compreender os factores por detrás desta realidade, entrevistámos um camionista de longo curso com 14 anos de experiência. O profissional detalha a rotina, os riscos e as condições de trabalho que contribuem para a crescente sinistralidade na estrada.

Pode nos falar da sua experiência como motorista de longo curso?

Tenho 14 anos de experiência profissional. Já conduzi em vários países e considero que tenho um conhecimento sólido sobre estradas e segurança rodoviária. Comecei a trabalhar em 2011 numa empresa privada, conduzindo camiões menores. Em 2012 fui recrutado pela transportadora Lalgy, onde continuo a trabalhar até hoje. Durante este tempo, percorri tanto as províncias centrais como a região de Maputo, e tenho experiência considerável no transporte de carga de longa distância.

O que observa actualmente na EN4 em termos de acidentes envolvendo camiões?

Ao longo da EN4, especialmente na zona de Maputo, registam-se vários acidentes relacionados com camiões de grande tonelagem. Muitos transportam minério da África do Sul para o Porto, mas também existem outros tipos de carga. O que se nota é que os acidentes ocorrem principalmente devido a fadiga, pressão por cumprimento de prazos e às condições da estrada.

Muitos camiões percorrem longas distâncias, algumas vezes sem descanso suficiente. Ao chegarem a Maputo, precisam de partilhar a via com veículos ligeiros, aumentando o risco de colisões graves. Condutores exaustos acabam por perder reflexos, e os acidentes tendem a ocorrer nos pontos de tráfego intenso, como os stop and go, ou durante ultrapassagens arriscadas.

Pode explicar o que leva os motoristas a assumir tais riscos?

O transporte de mercadorias é muito lucrativo para os patrões. Por exemplo, um patrão com uma frota de 50 camiões precisa escoar milhares de toneladas, muitas vezes em contratos rígidos. Para o motorista, o salário básico é baixo, mas existem prémios por cada viagem concluída. Isso leva o condutor a percorrer longas distâncias sem descanso, para aumentar os ganhos.

Na prática, isso significa que alguém pode sair de Maputo às 16:00 e, sem espaço para descanso, seguir viagem até à África do Sul. Durante o percurso, o motorista recorre a bebidas energéticas para manter-se acordado, mas isso apenas adia a fadiga, que acaba por se manifestar de forma perigosa na estrada.

E quanto à burocracia nas fronteiras e Portos?

A situação nas fronteiras e no porto também é complicada. Ao atravessar a fronteira, os camiões enfrentam filas de pelo menos 10 km e mais 7 km para tratar da documentação. Depois, no Porto de Maputo, há engarrafamentos e atrasos que obrigam os condutores a permanecer acordados até às 22:00 ou 23:00 para descarregar. Isso agrava a fadiga e aumenta o risco de acidentes.

Além disso, quando não há parques de estacionamento ou áreas de descanso apropriadas, os motoristas são obrigados a dormir na estrada ou na fronteira, comprometendo ainda mais a segurança.

O uso de tecnologias modernas nos camiões contribui para a sinistralidade?

Sim. Os camiões modernos têm sistemas automáticos que permitem manter velocidade constante e controlar parcialmente a direcção. Embora isso reduza o esforço do motorista, também pode induzir à distracção. Alguns condutores acabam adormecendo enquanto o veículo segue automaticamente, o que contribui directamente para acidentes graves.

Além disso, quando o motorista precisa intervir em situações de tráfego intenso, o veículo, devido ao seu peso e velocidade, torna-se difícil de manobrar, aumentando o impacto em caso de colisão. Muitas vezes, os acidentes ocorrem sem sinais de travagem, porque o condutor não consegue reagir a tempo.

Quais são outras práticas arriscadas adoptadas pelos motoristas?

Uma prática comum é desengatar as mudanças nas descidas para poupar combustível. O patrão estipula limites rigorosos de consumo e a pessoa precisa fazer o camião deslizar sem gastar combustível. Isso aumenta a dificuldade de controlar o veículo, sobretudo em caso de obstáculos inesperados. Infelizmente, essa prática já causou a morte de três motoristas moçambicanos na África do Sul apenas este ano.

O cerne deste problema está nos donos dos camiões, que impõem metas rigorosas e horários extenuantes. O condutor acaba sacrificando a própria vida para cumprir os objectivos, devido à pressão económica e à exploração laboral.

Que recomendações daria para reduzir os acidentes na EN4?

Primeiro, limitação das horas consecutivas de condução  no máximo 10 horas por dia. Isso reduziria significativamente a fadiga. Segundo, melhoria da infraestrutura da estrada, incluindo sinalização adequada e ampliação de trechos críticos. Terceiro, políticas claras de remuneração e gestão de motoristas, evitando exploração e permitindo pausas regulares.

Se essas medidas forem implementadas, muitos acidentes poderiam ser evitados. É importante compreender que o risco não está apenas no condutor, mas também na estrutura económica e nas exigências das empresas de transporte.

Como descreve o impacto destes acidentes nas famílias e comunidades?

Os acidentes na EN4 afectam vidas directamente. Cada colisão grave resulta em mortes ou ferimentos graves, deixando famílias desestruturadas. A comunidade sente o impacto, porque muitos motoristas são pais e sustentam famílias inteiras. Além disso, acidentes frequentes criam um ambiente de insegurança para todos os utilizadores da estrada, incluindo automóveis ligeiros e transportes públicos.

A pressão por dinheiro e o desejo de complementar salários colocam condutores em risco constante. Infelizmente, muitos acidentes poderiam ser evitados se houvesse regulamentações mais rigorosas e políticas de protecção ao trabalhador.

Qual é a situação actual da EN4 em termos de fluxo de camiões?

O fluxo de camiões na EN4 é maior que no passado. A estrada, herdada da época da TRAC, não foi ampliada para suportar a quantidade actual de veículos pesados. Ultrapassagens se tornaram complexas, sobretudo quando vários camiões se seguem consecutivamente. Além disso, as condições da estrada, sinalização deficiente e obras em andamento dificultam a condução segura.

O risco é elevado para qualquer condutor que se depare com um comboio de camiões, especialmente se estiverem exaustos ou distraídos.

A sinistralidade na EN4 é consequência de factores múltiplos: exploração laboral, fadiga, burocracia fronteiriça, más condições da estrada, prática arriscada de condução e tecnologias mal utilizadas. O desafio é estrutural e humano, exigindo soluções que integrem regulamentação, fiscalização, melhorias de infraestrutura e políticas de protecção aos trabalhadores.

Enquanto essas medidas não forem implementadas, a EN4 continuará a representar um risco significativo, e os acidentes graves manter-se-ão como uma triste realidade que destrói vidas e desestrutura famílias em Maputo e arredores.

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