Este é um cartão amarelo à Rádio Moçambique (RM) e, por extensão, a toda a imprensa estatal que, ao longo destes cinquenta anos de independência, se transformou de guardiã da informação em cúmplice da mentira. É um cartão amarelo que nasce da indignação contra um órgão público, sustentado com os impostos de milhões de moçambicanos, que deveria servir o povo com informação verdadeira, mas que, na prática, se colocou ao serviço do partido no poder. Em vez de usar a sua estrutura nacional para informar e fiscalizar, a RM usa a sua posição privilegiada para negociar a verdade.
Negociar a verdade significa transformá-la numa mercadoria. Significa que a informação que pertence ao povo, paga com o dinheiro do povo, só é divulgada se isso servir interesses internos da própria empresa ou do regime a que está submetida. A Rádio Moçambique, segundo relatos e perceções crescentes, chega a usar o conhecimento que tem sobre fraudes eleitorais como moeda de chantagem: se as promessas de regalias e aumentos salariais não forem cumpridas, há a ameaça de expor os contornos dessas fraudes. Ou seja, a verdade é retida ou liberada não com base no interesse público, mas como ferramenta de barganha.
Este comportamento é mais do que antiético — é a negação completa do propósito do jornalismo. A RM existe graças aos impostos de trabalhadores, camponeses, vendedores informais e cidadãos que, todos os dias, lutam para sobreviver. E, no entanto, quando chega a hora de retribuir esse apoio com informação livre e honesta, a resposta é o silêncio ou a mentira oficial. Esta é a essência do cartão amarelo: chamar à atenção para o facto de que uma empresa pública, que deveria estar a serviço de todos, escolhe servir a um só — o poder político que a controla.
A missão de um jornalista é clara: dizer a verdade, mesmo quando essa verdade é incômoda; fiscalizar o poder, mesmo quando o poder ameaça; proteger o interesse público, mesmo quando isso significa enfrentar riscos pessoais. No entanto, no contexto moçambicano, essa missão foi trocada por conveniência política, salários garantidos e favores. A imprensa estatal, e a RM em particular, deixou de ser uma aliada do povo e tornou-se uma aliada do regime.
Isso não é apenas uma falha moral. É também cumplicidade com crimes. Ao esconder ou manipular informações sobre as fraudes eleitorais, a repressão pós-eleitoral, as mortes e mutilações que marcaram os últimos anos, a RM não está apenas a contar “meia verdade” — está a encobrir injustiças, a proteger agressores e a contribuir para a perpetuação da violência.
E não nos enganemos: o jornalismo verdadeiro cobra caro. Moçambique conhece o preço pago por quem não se rende ao silêncio. Carlos Cardoso foi assassinado em 2000 porque ousou expor esquemas de corrupção que envolviam figuras poderosas. O seu crime foi ter recusado a narrativa oficial e ter dado ao povo a informação que tinha direito de saber. Mais recentemente, Arlindo Chissale, um jornalista que buscava expor verdades sobre o processo eleitoral e sobre as irregularidades que sustentam o poder, foi morto. Estes casos não são acasos trágicos — são recados claros de um sistema que pune quem se atreve a cumprir o ofício da verdade.
O ofício da verdade é o mais nobre ato de cidadania. É nele que se sustenta a liberdade, é dele que depende a saúde de qualquer democracia. Mas em Moçambique, este ofício tornou-se uma profissão de alto risco. Quem o exerce com integridade enfrenta ameaças, perseguições e, como vimos, a morte. Por isso, quando órgãos públicos como a RM optam por se alinhar ao poder, estão a trair não apenas a sua missão jornalística, mas também a memória dos que tombaram por insistir na verdade.
A gravidade da situação aumenta quando pensamos no que ainda está escondido. Quantos dossiês, quantos relatórios, quantas gravações e provas de manipulação eleitoral estão trancados nas gavetas da Rádio Moçambique e de outros órgãos cúmplices? Quantas dessas informações poderiam mudar o rumo político do país se viessem a público? Ao manterem-se guardadas, essas provas servem apenas para sustentar o jogo de chantagem entre imprensa estatal e poder político.
Se um dia essas verdades forem reveladas, o impacto será devastador para a legitimidade do governo. Ficará exposto que o poder foi mantido não pela vontade popular, mas por um esquema articulado de manipulação, com a participação ativa da imprensa estatal. E, quando isso acontecer, a máscara cairá: não será mais possível manter a narrativa de que vivemos numa democracia funcional. Eleições fraudulentas não são democracia — são uma ditadura vestida com o disfarce do voto.
O problema é que, até lá, o povo continua a ser enganado diariamente. As rádios e televisões públicas, pagas com dinheiro público, transformaram-se em máquinas de propaganda. As notícias são filtradas para proteger o regime, as críticas são abafadas e as vozes dissidentes são marginalizadas. O resultado é um país onde a mentira se tornou regra e a verdade, excepção.
Não há neutralidade possível neste cenário. Quem se cala diante de injustiças está, de facto, a tomar partido pelo opressor. A RM e a imprensa estatal já fizeram a sua escolha: preferem o conforto da cumplicidade ao risco da verdade. Preferem negociar a informação do que cumpri-la como dever sagrado.
Este cartão amarelo serve, portanto, como um aviso público: o jornalismo não é profissão para marionetas. É uma missão para quem está disposto a enfrentar o poder com coragem. Carlos Cardoso e Arlindo Chissale pagaram com a vida por esta coragem. A RM e outros órgãos estatais, pelo contrário, vendem diariamente a sua dignidade por benefícios e regalias.
Um dia, quando os dossiês secretos forem abertos e a verdade vier à luz, ficará claro que a democracia que se proclamava ao povo não passava de um teatro bem encenado para manter um partido no poder. Nesse dia, não bastará dizer “cumpri ordens”. A responsabilidade será individual. Cada jornalista, cada editor, cada diretor que escolheu servir a mentira terá de responder pelo seu papel na manutenção de um sistema injusto.
O jornalismo estatal em Moçambique não é, hoje, um serviço público — é um serviço ao poder. E enquanto assim for, continuará a ser um dos rostos mais visíveis da decadência da democracia e da verdade no país. A imprensa pode ser a última barreira contra o autoritarismo, mas quando se coloca ao lado dele, transforma-se numa arma contra o povo.
O povo moçambicano tem direito à verdade. E negar-lhe esse direito é negar-lhe também a liberdade. A RM e a imprensa estatal já fizeram a sua escolha. Este cartão amarelo é um aviso, mas também um apelo: recuperem a dignidade do jornalismo antes que a história vos coloque, de forma definitiva, do lado errado.
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2025-09-19
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