Os últimos escravos: O dossier “Madjermanes ” e a impavidade cúmplice do governo Alemão

No coração da capital moçambicana, todas as quartas-feiras, um grupo de homens e mulheres caminha em direcção ao centro da cidade, fortemente escoltados pela polícia da República de Moçambique.
Eram muitos, mas o número vai reduzindo e há cada vez menos. Os poucos que ainda resistem carregam nos rostos o peso de uma história que manchou duas nações: Moçambique e Alemanha. Mesmo quando o assunto é ignorado nos corredores diplomáticos mundiais e a nível interno, a resistência parece que só cessara com a sepultura, segundo o que eles próprios defendem afincadamente, a medida que as chances de receber o seu dinheiro vão esmorecendo a cada quarta-feira, a cada perda de um militante.
Chamam-se Madjermanes, termo popularmente atribuído aos trabalhadores moçambicanos enviados à República Democrática Alemã (RDA) no final da década de 1980, que foram movidos pela promessa de emprego digno, formação profissional e a acumulação de poupanças que lhes garantiriam uma vida melhor ao regressarem. Um sonho transformado em pesadelo. 

A realidade, porém, foi brutalmente distinta. Cerca de 60% dos salários desses trabalhadores eram descontados mensalmente e enviados, segundo o acordo oficial,
para Moçambique. O entendimento era que, ao regressarem, receberiam o valor acumulado. Mas nada chegou. Décadas depois, a verdade começou a emergir:
o dinheiro teria sido usado para amortizar dívidas do Estado moçambicano junto ao governo alemão após a unificação das duas Alemanhas. 

A questão central, que ressoa como uma acusação sem resposta, é simples: como dois Estados puderam dispor do trabalho de milhares de cidadãos como se fossem
meras mercadorias de troca para saldar dívidas soberanas? A resposta é dura e aponta para uma cumplicidade que, à luz do direito internacional, se assemelha a uma forma moderna de escravatura. 

Na sequência passamos o testemunho de Um ex trabalhador  da Ex RDA que explica de forma simples o que sucedera com eles:
“Na Alemanha apenas beneficiávamos de 40% do salário e 60% era descontado para ser pago na terra de origem. Ninguém de nós estava consciente de que não íamos
beneficiar desse valor. Quando regressámos, cada um trazia a sua caderneta, mas ela foi confiscada logo no aeroporto de Mavalane. Descobrimos, tarde demais,
que tínhamos sido usados para pagar dívidas do Estado moçambicano. Nós fomos os últimos escravos.” – Carlos Vasco Chuma, 57 anos. 
A história de Chuma não é isolada. Multiplicam-se testemunhos semelhantes: homens que regressaram com as mãos vazias, famílias desfeitas, sonhos interrompidos.
Muitos não conseguiram reintegrar-se no mercado de trabalho, vítimas de estigmatização social, vistos como “preguiçosos” ou “espertos demais para o sistema”.
Outros emigraram de novo, sem sucesso, em busca de dignidade. 

O trauma atravessa gerações. Filhos e netos dos Madjermanes participam hoje nas marchas de quarta-feira, lembrando ao país e ao mundo que a dívida da história ainda
não foi paga. Desde 1990, sem descanso, transformaram a quarta-feira em dia de protesto. Marcham diante do parlamento, do Ministério do Trabalho, da embaixada alemã.
Foram repelidos, perseguidos, em alguns casos mortos a tiro em plena luz do dia. No jardim onde se concentram, pedras marcam os lugares dos que tombaram. 

Não se trata apenas de uma reivindicação económica. Trata-se de dignidade. “Saímos daqui com dinheiro ou de caixão”, resume Chuma. A frase, repetida em coro,
é tanto grito de desespero como acto de resistência. Três décadas depois, a luta persiste. Mas a cada ano o cortejo diminui: não por desistência, mas porque a idade
e a pobreza ceifam vidas. 

A narrativa oficial de Berlim é evasiva. Reconhece-se a existência de acordos laborais, admite-se a transferência de valores para Moçambique, mas nega-se a
responsabilidade sobre o destino final do dinheiro. Contudo, documentos e testemunhos sugerem que as autoridades alemãs sabiam que os fundos não chegariam
aos trabalhadores. Mais ainda: participaram activamente na negociação que usou o trabalho de cidadãos moçambicanos como moeda para pagar dívidas interestatais.
Este silêncio, no mínimo, constitui uma violação dos princípios básicos de protecção dos direitos humanos consagrados em convenções internacionais ratificadas pela Alemanha. 

Se a Alemanha foi cúmplice, o Estado moçambicano foi protagonista. Aceitou o acordo, confiscou cadernetas, reprimiu manifestações e, em muitos momentos, declarou
o assunto “encerrado”. O silêncio dos sucessivos governos, de Joaquim Chissano a Filipe Nyusi, é prova da estratégia deliberada de esvaziar o tema do debate público.
Mas o custo humano é visível: famílias desorganizadas, gerações sem acesso a educação ou saúde adequada, trabalhadores marginalizados. 

À luz do direito laboral internacional, o caso dos Madjermanes abre um precedente perturbador. Ele levanta questões essenciais: nenhum dos trabalhadores foi informado
de que o dinheiro descontado seria usado para pagar dívidas soberanas, o que fere o direito à propriedade sobre os rendimentos do trabalho. Ainda mais grave,
inscreve-se nas práticas tipificadas como trabalho forçado e escravatura moderna. Tanto Moçambique como Alemanha violaram compromissos internacionais de proteção
dos trabalhadores. 

A Convenção nº 29 da OIT define trabalho forçado como todo aquele exigido sob ameaça e sem consentimento voluntário. Apesar de os Madjermanes terem aceitado
ir à Alemanha, não consentiram na apropriação dos seus salários para fins estatais. A Convenção nº 105 da OIT proíbe expressamente o uso de trabalho forçado para
fins de desenvolvimento económico ou pagamento de dívidas do Estado, o que torna a conduta dos dois governos uma violação direta. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais também estabelecem o direito de toda pessoa
a uma remuneração justa e favorável. Ao privar os Madjermanes do fruto do seu trabalho, Moçambique e Alemanha feriram esses compromissos internacionais. 
Além disso, o direito internacional reconhece que vítimas de violações têm direito à reparação integral, incluindo compensação financeira, reabilitação e
garantias de não repetição. 

O drama não é apenas passado. É presente. Filhos e netos herdaram não só a pobreza, mas também o estigma. Jovens que deveriam ter crescido em famílias economicamente
estáveis hoje marcham pelas ruas, cantando palavras de ordem que herdaram como maldição. Cada marcha é também um lembrete cruel de que o tempo não volta atrás.
“Por mais que venham nos dar o dinheiro, o tempo já não se recupera. Trinta e cinco anos não é brincadeira”, lamenta Chuma. 

Que a Alemanha, potência europeia e modelo de democracia liberal, tenha participado nesta mancha histórica é uma contradição dolorosa. Esperava-se mais de um
Estado que se apresenta como guardião dos direitos humanos. Da mesma forma, o governo  Moçambicano vai ignorando essa luta dos madjermanes,  mesmo quando há evidencias de que tenha convertido cidadãos em moeda de troca. Este cenário é um testemunho da falta de ética das elites políticas moçambicanas e do tipo de regime que se instalou. 

O caso dos Madjermanes é, portanto, um espelho. Reflecte a distância entre o discurso civilizacional e a prática real dos Estados. Mostra como, em nome da
razão de Estado, vidas humanas podem ser negociadas como simples números numa planilha de dívida externa. 

Mais do que compensações financeiras, o que está em causa é a dignidade de milhares de cidadãos. É a credibilidade de duas nações. É a força do direito internacional
diante da exploração moderna. Enquanto Berlim e Maputo que apesar de reconhecerem oficialmente a cumplicidade, não iniciarem um processo de reparação, a ferida permanecerá aberta entre as gerações vindouras desse grupo que aos poucos vai desaparecendo deixando rastros de tristezas profundas. 

O dossier Madjermanes não é apenas um conflito entre Estado e cidadãos. É um capítulo de uma história maior: a de como o poder, em aliança com a dívida e a diplomacia,
pode esmagar vidas anónimas. A luta dos Madjermanes é, ao mesmo tempo, uma luta por justiça local e um alerta global. Ela lembra que, enquanto trabalhadores puderem ser
usados como moeda de troca, o mundo continuará a produzir novos escravos. Moçambique e Alemanha devem respostas. E não apenas aos que ainda marcham, mas também aos que já morreram esperando. 

A pergunta que fica é simples e brutal: quanto vale a vida de um trabalhador?

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