O Dilema de Chapo: As Nuances da Lealdade Partidária e o Temor a Deus

Redacção- Entrevista com o cientista político Alípio Mauro Jeque, membro da Associação Moçambicana de Cientistas Políticos (AMCP)


Entre as vozes corais de um culto religioso transmitido ao vivo, um homem se destaca. De mãos erguidas, rosto compenetrado e olhar em contrição, o Presidente Chapo acompanha os cânticos e ouve atentamente o sermão inflamado de um pastor internacional que, entre as passagens bíblicas, deixa escapar frases com peso político. “O verdadeiro líder serve a Deus antes de servir aos homens”, diz o pregador. As câmeras focam o rosto sereno do Chefe de Estado, cuja fé pública se tornou parte essencial de sua imagem. Mas há um dilema, talvez o mais profundo de sua carreira política: como conciliar a moral divina com a lealdade partidária, quando esta exige decisões que a primeira condena?

A questão não é apenas espiritual. É também política, ética e simbólica. Moçambique vive um dos momentos mais tensos da sua história recente: pós-eleições contestadas, repressões violentas, aumento da pobreza e um sentimento colectivo de traição cívica. O país respira medo e descrença, enquanto a elite política parece cada vez mais distante da realidade popular. No centro dessa tormenta está Chapo, um presidente que carrega a Bíblia numa mão e o peso do partido na outra.

Para compreender esse paradoxo, a reportagem conversou com Alípio Mauro Jeque, cientista político e membro da AMCP, cuja leitura das dinâmicas de poder moçambicanas ganha cada vez mais projecção. Jeque analisa o fenómeno à luz de clássicos da filosofia política, de Maquiavel a Webber e coloca o presidente diante de uma encruzilhada moral raramente vivida por líderes contemporâneos: ser um cordeiro entre lobos, ou um lobo vestido de cordeiro.

“Chapo vive o seu primeiro grande teste de consciência”, diz Alípio Mauro Jeque

Redaccao: Jeque, quem é o Presidente Chapo neste momento, um homem de fé ou um homem de partido?
Alípio Mauro Jeque: Essa é uma das perguntas mais difíceis de responder, porque Chapo é simultaneamente as duas coisas, e é exactamente aí que nasce o seu dilema. Ele acredita genuinamente na sua fé e tem feito questão de o mostrar publicamente desde o primeiro dia como PR; disso não tenho dúvidas. Mas ele também é produto de uma máquina partidária cuja lógica ultrapassa a moral individual. Como diria Maquiavel, “um príncipe não deve temer ser odiado, desde que saiba ser temido”. O problema é que Chapo não nasceu para ser temido, nasceu para ser amado, e talvez isso o enfraqueça politicamente.

O dilema entre a ética e a moral

Chapo ascendeu ao poder sob o amparo de um partido historicamente hegemónico, cuja permanência no poder se confunde com a própria história do Estado moçambicano. Mas a hegemonia cobra um preço: a abdicação parcial da consciência moral em nome da obediência política.

Max Weber, em A Política como Vocação, descreve essa tensão entre a ética da convicção (agir segundo princípios morais) e a ética da responsabilidade (agir conforme as consequências políticas). “Chapo”, explica Jeque, “parece tentar viver as duas éticas ao mesmo tempo. Mas, quando o Estado sangra nas ruas, a moral individual é sempre a primeira a ser sacrificada.”

As imagens de fiéis orando ao lado do presidente, enquanto famílias choram seus mortos nas manifestações pós-eleitorais, ampliam a sensação de incoerência entre o discurso e a prática. Para Jeque, “não há contradição maior do que um governante que se ajoelha perante Deus e, ao mesmo tempo, manda silenciar o povo que clama por justiça.”

Redacção: Jeque, Chapo está sendo vítima ou cúmplice de um sistema?

Alípio Mauro Jeque: Ele é as duas coisas. A política moçambicana funciona num sistema de fidelidades verticais, em que a sobrevivência política depende da obediência. Chapo foi colocado onde está por forças maiores, uma elite que não tolera desvios. Ele tem consciência disso, e por isso age dentro de um perímetro apertado. Mas o dilema é que, quanto mais ele tenta agradar o partido, mais perde a legitimidade moral diante da população.

 

 

Quando a fé vira política

Nos últimos meses, vídeos de cultos presidenciais viralizaram nas redes sociais. Em um deles, um pastor estrangeiro ora dizendo que “o Senhor castigará aqueles que se levantarem contra o ungido”. A oração, embora velada, foi interpretada como uma mensagem directa à oposição e aos críticos do governo.

“Isso é profundamente simbólico”, observa Jeque. “A religião, quando instrumentalizada, transforma-se num escudo ético para justificar o poder. É um fenómeno perigoso, que já vimos em regimes autoritários do século XX, embora na contemporaneidade seja difícil subjugar uma população baseando na religião, uma vez que esta enfrenta uma crise interna e um alastramento sem precedentes que vai corroendo sua doutrina”

Ele cita Hannah Arendt, para quem “o mal não é cometido por monstros, mas por homens comuns que obedecem cegamente a ordens”. “Chapo não é um tirano no sentido clássico, mas o perigo é ele se tornar um moralista funcional, alguém que acredita estar agindo segundo a vontade divina, mesmo quando viola princípios básicos de justiça.”

Redacção: O cenário político actual aumenta esse dilema?

Alípio Mauro Jeque: Sem dúvida. O governo vigente atravessa uma crise de legitimidade sem precedentes. As receitas do Estado não cobrem as despesas, os salários são humilhantes para quem trabalha e escandalosos para quem manda, e a pobreza cresce de forma acelerada. Em paralelo, as guerras em Cabo Delgado e os desastres naturais corroem a esperança coletiva. Chapo governa um país exausto. E quando um líder se vê sem meios para resolver as causas da dor nacional, tende a buscar refúgio na fé ou na repressão.

A perda do medo

O cientista observa ainda um fenómeno novo e perturbador: a população perdeu o medo.
“Hoje, há uma coragem cívica que o partido não sabe administrar. Desde a mídia à academia, as pessoas exigem respostas. E Chapo sente a pressão. Nunca antes, na sua trajectória como governante, ele foi tão cobrado, tão exposto, tão vulnerável.”

Jeque lembra que Maquiavel alertava que “os homens esquecem mais facilmente a morte do pai do que a perda da fortuna”. “No caso de Moçambique, a população sente que perdeu tudo, a dignidade, a comida, o futuro. E quando o povo sente que já não tem nada a perder, torna-se ingovernável.”

Redacção: Há saída para esse dilema moral?

Alípio Mauro Jeque: Existe, mas exige coragem. Chapo precisa decidir se quer ser lembrado como o presidente do partido ou o presidente da nação. Se continuar a obedecer ao aparelho, terminará engolido por ele. Mas se ousar romper e governar segundo a sua consciência, talvez entre para a história. O que Maquiavel ensina é que o príncipe pode ser temido, sim, mas deve sobretudo ser prudente. E a prudência, hoje, talvez seja ouvir o povo e não apenas o partido.

O dilema final

Entre a fé e o poder, entre o púlpito e o palácio, Chapo parece viver um martírio político. O dilema não é apenas dele, mas de todos os líderes que tentam conciliar moral cristã e real politica.

Santo Agostinho escreveu que “um Estado sem justiça é apenas uma grande associação de ladrões”. Weber acrescentaria que “o político deve fazer um pacto com o diabo, mas jamais se deixar possuir por ele”.

Jeque conclui a entrevista com um olhar reflexivo:

“O dilema de Chapo é o dilema do próprio país. Um Moçambique dividido entre a fé e o poder, entre o bem e o pragmatismo, entre o medo e a esperança. Ele pode ser cordeiro ou lobo, mas precisa escolher logo, antes que o rebanho se revolte e o pastor o abandone.”

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