
Nas ruas quentes e poeirentas das cidades moçambicanas, o sol cai com um peso que não é apenas de calor — é o peso da sobrevivência. Ali, entre buzinas e pregões, erguem-se os Modjeiros: vozes de uma classe que não tem rosto nem morada certa, mas que se tornou o espelho da pobreza urbana. São jovens empurrados pelas ondas do desemprego, pela desiludida promessa de um futuro que nunca chegou. No meio do caos do trânsito e da pressa dos outros, eles sobrevivem a cada grito, a cada carro parado, a cada metical ganho com suor e desespero.
A pobreza urbana em Moçambique não é apenas a falta de dinheiro. É uma ferida social aberta, visível nas esquinas onde o betão se mistura com a lama, e onde o sonho se mistura com a garrafa. Segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística, mais de 42% dos jovens entre os 18 e 35 anos nas cidades moçambicanas estão desempregados ou subempregados. Desses, a maioria sobrevive de actividades informais: carregar sacos, vender em dumba-nengues, lavar carros, ou chamar passageiros nos terminais — os Modjeiros. Outros têm empregos de subsistência, tão precários que o salário mal cobre o custo de um jantar modesto.
O Modjeiro é, portanto, o rosto mais cru dessa realidade. É o resultado de um sistema económico que exclui e de um Estado que finge não ver. É o filho que não teve padrinho no partido nem vaga no concurso público. É o sobrevivente de um país que o educou para sonhar, mas não lhe deu escadas para subir.
José Jorge, 26 anos, vive no bairro do Jardim. Há oito anos que modja — termo que, no calão urbano, significa chamar passageiros nos terminais, apontando carros, disputando atenção com voz rasgada e gestos firmes. "Já tentei em várias empresas, mas lá dentro tudo é esquema", conta, com um sorriso amargo. "Pelo menos aqui ganho mil meticais por dia, quando o dia corre bem." Mil meticais — menos de vinte dólares por um dia inteiro de gritos, empurrões e humilhações.
José já viu de tudo. Polícia à paisana que prende Modjeiros sem motivo, torturas em esquadras, humilhações em nome da ordem pública. "Dias depois soltam-nos, mas já é tarde. A vergonha fica. A raiva também." Mas é o álcool o seu maior companheiro. "O álcool tira a vergonha e dá coragem pra continuar a modjar", diz, sem olhar para o gravador. O trago é o anestésico dos derrotados.
E não é só ele. No terminal da Junta, Manuel Alberto, 38 anos, também bebe antes de começar o dia. "Fui ladrão. Fui preso várias vezes. Aqui encontrei um jeito de sobreviver sem roubar. Mas o trabalho é pesado, o calor é muito, e a raiva dos polícias é pior. Então bebemos." O álcool, dizem, ajuda a suportar a fome e a humilhação. É uma fórmula tão antiga quanto a miséria.
O fenómeno dos Modjeiros está profundamente ligado à crise de emprego juvenil. Em Maputo, Matola, Beira e Nampula, mais de 70% dos empregos urbanos são informais, segundo o Banco Mundial. É o império da sobrevivência improvisada. E quando o Estado se ausenta, o caos se institucionaliza. Jovens que deveriam ser o motor do desenvolvimento tornam-se peças de um tabuleiro invisível, onde cada dia é uma batalha contra o esquecimento.
Daniel Nasson, 34 anos, ex-militar, virou Modjeiro depois de dois anos sem emprego. "Terminei o serviço militar e pensei que ia ter um lugar em algum ministério. Esperei, esperei, e nada. Passei aqui, vi os manos a trabalhar e entrei." Hoje, ganha em média 500 meticais por dia, quando o movimento ajuda. Vive com os pais, divorciado, dois filhos. O álcool também faz parte do ritual. "Ajuda a esquecer que falhamos."
A verdade é que muitos desses jovens não falharam: foram falhados pelo sistema. Um sistema que os empurra para a informalidade e, ao mesmo tempo, os criminaliza. As detenções arbitrárias, relatadas por quase todos, mostram o quanto o Modjeiro é vítima de um Estado que o quer invisível. Quando ocorrem roubos nas paragens, a polícia prende os Modjeiros — não por provas, mas por presunção. No dia seguinte, são libertos, e o ciclo recomeça. São culpados por existirem.
O drama vai além do económico. É também uma questão de saúde pública e degradação moral. O consumo de bebidas espirituosas entre trabalhadores informais urbanos aumentou significativamente na última década. Segundo o Observatório Nacional de Saúde, quase 60% dos jovens trabalhadores informais consomem álcool regularmente, e em 25% dos casos, em excesso. O álcool tornou-se o lubrificante social da miséria: une, consola e destrói.
Nos terminais, o cheiro do gin barato mistura-se com o fumo dos carros e o suor dos corpos. É o perfume da sobrevivência. Alguns bebem de manhã, outros ao fim do dia, mas todos bebem. O álcool não é apenas um vício, é uma linguagem de resistência — um grito mudo contra um país que os esqueceu.
Por trás desse fenómeno está um problema maior: a ausência de políticas públicas eficazes para o emprego juvenil. Programas governamentais de inserção são muitas vezes propagandísticos e de curta duração. Prometem capacitação, mas oferecem ilusões. As pequenas iniciativas locais de empreendedorismo são engolidas pela burocracia e pela corrupção institucionalizada. E enquanto isso, os Modjeiros continuam a gritar nomes de destinos, não porque acreditam neles, mas porque não têm outro caminho.
A pobreza urbana, nesse contexto, não é apenas económica: é moral, é existencial. Não é só o bolso vazio, é o coração cansado. É o pai que não tem como comprar o uniforme do filho, é a mãe que se refugia na igreja, é o jovem que escolhe o álcool porque o sonho se tornou insuportável. A cidade que deveria acolher, expulsa. E os terminais tornam-se refúgios, verdadeiras trincheiras do quotidiano.
Em Moçambique, fala-se muito de crescimento económico, de investimentos estrangeiros, de megaprojetos. Mas pouco se fala do que isso significa para o jovem que acorda às cinco para modjar. O progresso é um conceito que não cabe na sua realidade. O Modjeiro não vê a luz dos gasodutos nem sente o ouro do Cabo Delgado. O seu país é outro: o das calçadas partidas, das promessas quebradas e das garrafas vazias.
A degradação moral, que muitos associam à bebida, é também um reflexo de um Estado que perdeu o sentido de justiça social. Quando a juventude precisa embriagar-se para suportar o dia, não estamos perante um problema de carácter, mas de dignidade humana. Quando um cidadão é preso por tentar viver do seu próprio esforço, o problema não é da rua — é do sistema.
O Modjeiro é o poeta triste das cidades moçambicanas. O seu verso é o grito, o seu palco é o terminal, o seu microfone é a garrafa. Vive num ciclo que mistura raiva, resignação e coragem. Não há sindicato que o represente, nem lei que o proteja. Mas há nele uma beleza crua, uma força ancestral que o faz voltar no dia seguinte, mesmo sabendo que o futuro não está ali.
Enquanto o Estado não olhar para os Modjeiros, a pobreza urbana continuará a ser um espectro que ronda as cidades. Porque eles não são o problema — são o sintoma. São o espelho de um país dividido entre os que têm tudo e os que não têm nada. O Modjeiro é o rosto dessa contradição: pobre, marginalizado, mas teimosamente vivo.
E talvez seja essa a lição que os Modjeiros nos deixam: a dignidade não se compra, não se herda, não se decreta. Constrói-se, mesmo que com voz rouca e passos cansados. No fim do dia, quando o sol se apaga sobre o asfalto quente, eles continuam lá, a chamar carros, a desafiar o esquecimento. Não porque acreditam num futuro, mas porque desistir seria morrer.
E no país da pobreza urbana e da degradação moral, continuar vivo é o acto mais revolucionário que lhes resta.

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