
Wilker de Assis de Sousa Dias, director-executivo da organização moçambicana Decide, é uma das vozes mais atentas à crise humanitária e política que se vive em Cabo Delgado. Docente universitário e activista dos direitos humanos, Wilker tem acompanhado de perto a realidade dos deslocados e a lenta resposta institucional diante de um conflito que já dura mais de oito anos. Nesta entrevista, ele fala sobre o agravamento da situação sociopolítica, a fragilidade das forças de defesa, o papel do Ruanda e o silêncio que cerca a dor de milhares de moçambicanos.
Recentemente, o Wilker esteve em Cabo Delgado, com o propósito de visitar os campos de acomodação em Mueda, Montepuez e Chiure. O que mais o impressionou nessa visita?
Infelizmente, a situação em Cabo Delgado continua longe de ser animadora. O conflito mantém-se intenso e os ataques têm aumentado, conforme já alertavam as Nações Unidas, que previam um dos anos mais violentos desde o início da insurgência. A cada dia, milhares de pessoas continuam a fugir de suas aldeias, sobretudo em Mocímboa da Praia e distritos vizinhos, refugiando-se em locais como Mueda e Montepuez.
Tive oportunidade de visitar o centro de Lyada, na estrada entre Mueda e Nangade, onde encontrei famílias inteiras vindas de Macomia, Midumbe e Nangade. São pessoas que deixaram tudo para trás — casas, plantações, lembranças — em busca de refúgio. O que mais me marcou foi o número de mulheres e crianças, muitas delas traumatizadas, vivendo em condições precárias e com pouquíssimo apoio institucional.
Nos últimos meses, têm sido reportados diversos assaltos em Pemba, inclusive a residências de funcionários de ONGs e congregações religiosas. A população associa essa onda de crimes à insegurança geral. Qual é a sua leitura sobre essa nova tendência?
A cidade de Pemba sempre teve fama de ser tranquila, mas, de facto, entre maio e julho deste ano, houve um aumento preocupante de assaltos a residências. Muitos dos alvos foram funcionários de organizações não-governamentais e membros de ordens religiosas. O mais alarmante é que alguns desses crimes tiveram a participação de agentes da própria polícia, o que abala a confiança da população e mostra o nível de desagregação das instituições de segurança.
Essa situação ocorre num momento em que o terrorismo ainda se alastra pela província. Há uma sensação de medo generalizado, e a linha que separa a criminalidade comum do terrorismo torna-se cada vez mais ténue. Quando os próprios agentes do Estado se envolvem em assaltos, o cidadão comum perde a referência da autoridade e da proteção estatal.
Há quem discorde da designação oficial de “terrorismo” para o que ocorre em Cabo Delgado, preferindo termos como “insurgência” ou “desestabilização”. Como o senhor interpreta essa diferença?
O termo “terrorismo” é amplamente usado, mas talvez o mais adequado fosse “insurgência” ou “desestabilização armada”. O conflito, tal como se apresenta, vai além da narrativa de radicalismo religioso. Existem fortes indícios de sabotagem e interesses económicos ocultos. Cabo Delgado é uma província extremamente rica — tem minérios, pedras preciosas e uma das maiores reservas de gás natural do mundo. Quando há ataques em zonas de mineração ou proximidades de projectos estratégicos, é difícil ignorar a hipótese de que a violência também serve a interesses económicos.
Há grupos locais que se aproveitam do caos para explorar recursos de forma ilegal, e há também dinâmicas externas que se beneficiam da instabilidade moçambicana. Grandes produtores internacionais de gás e petróleo, por exemplo, têm interesses directos na região. Por isso, a chamada “desestabilização” pode ser funcional tanto para actores internos quanto externos. Essa é uma das razões pelas quais o conflito se arrasta há tanto tempo — porque há quem lucre com a guerra.
Falemos da presença das Forças de Defesa e Segurança (FDS) e do contingente ruandês. Há percepções de que as tropas do Ruanda estão lá sobretudo para proteger os interesses da TotalEnergies. Essa leitura é justa?
É inegável que a presença das forças ruandesas tem sido determinante para conter alguns focos de violência, sobretudo nas zonas estratégicas do mega- projecto de gás. O Ruanda dispõe de tropas melhor treinadas e equipadas do que as forças moçambicanas, o que lhes confere maior capacidade operacional. No entanto, há também uma clara divisão de tarefas: as forças ruandesas concentram-se na protecção das áreas ligadas à Total, enquanto as FDS se encarregam da defesa da população e das zonas rurais, muitas vezes com meios muito limitados.
A falta de logística e de apoio financeiro às FDS é gritante. Muitos soldados relatam atrasos salariais e falta de subsídios. Sem remuneração adequada, abrem-se brechas perigosas — soldados desesperados podem acabar colaborando com o inimigo ou cedendo a esquemas de corrupção. Isso fragiliza a integridade territorial do país e mina a moral das tropas.
Essa precariedade entre os soldados não compromete também a confiança da população nas forças armadas?
Sem dúvida. A população percebe quando o Estado não consegue cuidar dos seus próprios defensores. Quando os soldados estão desmotivados e mal pagos, tornam-se vulneráveis e menos eficazes. Em alguns casos, chegam a abandonar os postos ou a negociar informações sensíveis. Esse é um cenário extremamente perigoso, que precisa ser enfrentado com seriedade.
A guerra em Cabo Delgado não pode ser vencida apenas com armas. É preciso garantir dignidade aos que combatem e, acima de tudo, investir na reabilitação social e económica das comunidades afectadas. Caso contrário, continuaremos a apagar incêndios enquanto o problema estrutural se agrava.
O senhor mencionou os mega- projectos de gás. Até que ponto o factor económico é central na persistência do conflito?
É central. O gás natural de Cabo Delgado é de altíssima qualidade e possui valor estratégico global. Quando há disputas em torno de recursos tão valiosos, a guerra deixa de ser apenas uma questão ideológica. O conflito transforma-se num instrumento de reconfiguração de poder — quem controla o território controla também a riqueza. E essa riqueza atrai não só grupos insurgentes, mas também redes políticas e empresariais que se beneficiam do caos.
A TotalEnergies, por exemplo, é tratada como prioridade máxima. Isso é compreensível do ponto de vista económico, mas revela também a desigualdade na protecção. Enquanto o mega- projecto é guardado com rigor, as aldeias vizinhas permanecem desprotegidas, e os deslocados vivem em condições desumanas. É uma contradição que denuncia o modelo de desenvolvimento excludente que Moçambique tem seguido.
Nos centros de acomodação que visitou, percebeu alguma presença efectiva do Estado ou das instituições de apoio humanitário?
A presença é muito limitada. Os campos de deslocados sobrevivem, em grande parte, graças à ajuda de organizações religiosas e de voluntários locais. O Estado aparece mais como observador do que como agente activo. Há falta de alimentos, de medicamentos, de saneamento e de informação. Muitos deslocados vivem sem saber se um dia poderão regressar às suas terras.
Essa ausência do Estado cria terreno fértil para o desespero e até para o recrutamento por grupos armados. Quando um jovem não vê futuro, é facilmente manipulado. A guerra continua porque as suas causas profundas — pobreza, exclusão e desigualdade — permanecem intocadas.
Em sua opinião, o silêncio institucional sobre Cabo Delgado é intencional?
Sim, e é isso que mais preocupa. Há uma tentativa clara de controlar a narrativa para não prejudicar a imagem internacional do país. O governo tenta transmitir a ideia de que tudo está sob controlo, de modo a manter os investimentos estrangeiros e a confiança dos parceiros. Mas, na prática, esse discurso beneficia apenas a elite económica, enquanto as populações deslocadas continuam esquecidas.
A falta de transparência impede também a mobilização de recursos. Quando o Estado não comunica a gravidade da crise, as organizações internacionais reduzem o apoio, acreditando que a situação está estável. É uma estratégia política que tem um alto custo humano.
O que precisaria mudar para que Cabo Delgado reencontrasse o caminho da paz e da estabilidade?
Antes de tudo, é preciso reconhecer que a paz não virá apenas pelas armas. É necessário um diálogo nacional sincero que envolva comunidades locais, líderes religiosos, sociedade civil e Estado. A guerra é apenas a superfície de um problema muito mais profundo: a falta de justiça social e de inclusão económica.
Além disso, é fundamental reformar o sector de defesa e segurança, garantindo salários dignos, formação adequada e respeito pelos direitos humanos. O combate ao terrorismo não pode ser usado como pretexto para violações. As populações precisam de sentir que as forças armadas estão do seu lado, e não contra elas.
Para encerrar, há alguma mensagem que gostaria de deixar aos moçambicanos e à comunidade internacional?
Gostaria de apelar para que olhemos para Cabo Delgado não apenas como uma província em guerra, mas como parte viva de Moçambique. Cada deslocado representa uma história, uma esperança e uma perda. Não podemos permitir que o silêncio continue a ser cúmplice da dor. É preciso falar, mostrar e agir.
A comunidade internacional deve compreender que o apoio humanitário é urgente, mas que a solução real passa por fortalecer as instituições moçambicanas e exigir transparência na gestão dos recursos naturais. Cabo Delgado é o espelho do país: se ali houver paz e justiça, Moçambique inteiro poderá reencontrar o seu caminho.

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