“Filhos dos Semáforos”: A infância perdida nos cruzamentos de Maputo

Sob o sol ardente da capital moçambicana, entre o roncar dos motores e o impaciente piscar das luzes vermelhas, estende-se um cenário silencioso de luta e sobrevivência. São meninos e adolescentes que limpam vidros de carros nos semáforos rostos anónimos de uma pobreza urbana que já se tornou parte da paisagem das grandes avenidas de Maputo.

Entre eles está Armando José Marcos, de 16 anos, morador do bairro Costa do Sol. Há um ano e meio que empunha o pano e o balde de água, num ofício improvisado que o ajuda a garantir o pão de cada dia.
“Os ganhos variam”, conta à nossa reportagem. “Há dias que consigo trezentos ou setecentos meticais, mas quando aparece alguém que aprecia o nosso trabalho, chego a mil meticais.”

Armando estudava na Escola do bairro Triunfo, mas a miséria travou o seu caminho. “Fiquei sem condições para comprar material escolar. Fiquei em casa por algum tempo, até que vi outros meninos que saíam de manhã e voltavam à tarde com compras. Fui ver o que faziam e percebi que limpavam vidros nos semáforos.”
Com o olhar fixo no horizonte, o jovem revela um paradoxo que só a pobreza explica: “Enquanto os camponeses rezam pela chuva, nós aqui pedimos ao céu que o sol não falhe. A chuva é o nosso maior inimigo.”

Apesar da aparente coragem, há arrependimento no tom da sua voz. Armando sonha em regressar à escola. “Quero voltar a estudar. Quero aprender para enfrentar a vida de outro jeito”, diz, num pedido silencioso de socorro social.

A geração dos cruzamentos

Outro jovem, conhecido apenas por Pai, tem 18 anos e vive o mesmo drama. Sai todos os dias do bairro da Maxaquene em direcção às avenidas principais, onde passa horas entre carros. Há três anos que limpa vidros. “Deixei de estudar na nona classe, sem motivo especial. Só fui ficando na rua”, confessa.

Em dias bons, leva cerca de trezentos meticais para casa. Em dias maus, volta de mãos vazias e com histórias de violência. “Quando o tempo está mau, é difícil. Alguns condutores insultam-nos e dizem que estamos a sujar os carros. E, ultimamente, a polícia tem levado quase todos para a esquadra. Depois de dois dias, libertam-nos, mas voltamos sempre, porque não temos para onde ir.”

O retrato da pobreza urbana

As histórias de Armando e Pai são apenas duas entre centenas de crianças e adolescentes que sobrevivem nas ruas de Maputo, fruto directo de uma pobreza urbana que se alimenta do desemprego, do abandono e da desigualdade estrutural.

A capital moçambicana tornou-se o epicentro de um êxodo rural silencioso. Famílias inteiras abandonam o campo, empurradas pela seca, pela falta de oportunidades e pela precariedade dos serviços básicos. Chegam à cidade com esperança, mas encontram outro tipo de deserto — o da exclusão.
Sem acesso a educação, emprego formal ou habitação digna, muitos jovens terminam à mercê da sorte, convertendo-se em pequenos empreendedores de rua: vendedores ambulantes, carregadores, guardadores de carros e limpadores de vidros.

Essas ocupações, embora ilegais, representam o último reduto de dignidade de quem o Estado esqueceu. São crianças que deviam estar nas escolas, mas que encontraram nos semáforos uma sala de aula improvisada onde a lição é simples e cruel: sobreviver.

Entre o risco e o vício

A vida na rua tem um preço alto. Muitos desses jovens acabam presos a um ciclo de vícios e marginalização. O álcool, a prostituição e a droga surgem como anestesia contra o frio, a fome e o medo.
“Há meninos que dormem nas paragens, outros juntam-se em grupos para dividir o que ganham. À noite, o perigo é outro: assaltos, abusos e violência”, relata um morador do bairro Malhangalene, que acompanha a rotina dos limpadores de vidros.

Segundo dados não oficiais recolhidos por organizações sociais, o número de menores que exercem actividades informais em Maputo cresceu significativamente nos últimos cinco anos, coincidindo com o agravamento da crise económica e o aumento do custo de vida.

A vulnerabilidade é ainda maior entre órfãos e filhos de famílias monoparentais muitas vezes deixados à própria sorte após a morte de pais vítimas de doenças, acidentes ou deslocamentos forçados.

Uma infância sequestrada pela desigualdade

O fenómeno dos limpadores de vidros é, na verdade, o espelho de uma sociedade em colapso moral e estrutural. Representa o fracasso de políticas públicas de protecção social e o desamparo de um Estado que, em vez de acolher, criminaliza a pobreza.
Quando a polícia leva esses jovens às esquadras, o problema não é resolvido apenas se adia o reencontro inevitável com a rua.

A cidade, que se pretende moderna e turística, convive diariamente com uma infância que mendiga dignidade nos cruzamentos. São os filhos da exclusão, das promessas quebradas e de uma urbanização sem alma.
Em cada pano molhado e vidro limpo há uma história de resistência, mas também um grito abafado de esperança.

 Amanhã pode chover

Antes de se despedir, Armando ergue o olhar para o céu nublado e diz, meio a brincar, meio a sério:
“Tomara que o sol volte amanhã. Se chover, não há pão.”

O seu sorriso inocente esconde a tragédia de uma geração que aprendeu cedo demais o que significa lutar pela sobrevivência não por escolha, mas por abandono.

Nas esquinas e semáforos de Maputo, o futuro de Moçambique espera por uma segunda chance.

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