
O conflito em torno do reajuste dos preços da energia eléctrica fornecida pela HCB à Mozal deixou de ser um simples diferendo contratual para se transformar num dos momentos mais críticos da história económica recente de Moçambique. Está em causa não apenas a viabilidade de uma multinacional, mas a credibilidade do Estado como negociador, a estabilidade de milhares de postos de trabalho e o futuro de um modelo industrial que, durante décadas, foi apresentado como vitrine do sucesso económico nacional. O Governo de Moçambique merece um cartão amarelo não por tentar rever termos que muitos consideram historicamente desequilibrados, mas pela forma como o processo foi conduzido, expondo o país a riscos profundos e potencialmente irreversíveis.
A Mozal iniciou as suas actividades no final da década de 1990, num contexto em que Moçambique saía de um longo conflito armado e precisava desesperadamente de investimento estrangeiro directo. O projecto foi concebido como âncora da industrialização pesada, símbolo de estabilidade, modernidade e integração do país nas cadeias globais de valor. Desde o início, porém, a sua sustentabilidade assentou num conjunto de condições excepcionais: benefícios fiscais amplos, garantias contratuais de longo prazo e, sobretudo, acesso a energia eléctrica abundante e barata proveniente da HCB. Esta energia não era um detalhe; era o coração do negócio. A produção de alumínio é intensiva em electricidade, e qualquer alteração significativa no preço do megawatt-hora tem impacto directo na competitividade global da fundição.
Décadas depois, o contexto mudou. O Estado moçambicano enfrenta pressões fiscais crescentes, níveis elevados de endividamento, uma população cada vez mais exigente e um discurso político que reivindica maior soberania sobre recursos estratégicos. Neste cenário, a revisão do preço da energia fornecida à Mozal surge quase como inevitável. A questão central, porém, não é se os preços deveriam ou não ser revistos, mas como essa revisão foi conduzida e até onde se está disposto a ir sem uma estratégia clara de mitigação dos danos.
A Mozal alega que os novos preços propostos pela HCB são exageradamente elevados e economicamente insustentáveis, colocando em causa a continuidade das operações. Segundo a empresa, a única alternativa viável perante tais custos seria o encerramento da fábrica e a demissão de milhares de trabalhadores, pondo fim a um relacionamento de quase quatro décadas. Esta posição extrema levanta dúvidas legítimas. É plausível que uma empresa desta dimensão não tenha margem de adaptação? Ou estaremos perante uma estratégia clássica de pressão, um bluff industrial destinado a forçar concessões de última hora por parte do Estado?
A negociação está repleta de pontas soltas. O público não conhece, com clareza, os valores exactos praticados anteriormente, nem os montantes concretos agora exigidos. Não foram divulgados estudos independentes que demonstrem, de forma transparente, a inviabilidade económica alegada pela Mozal ou, por outro lado, os ganhos líquidos reais para o Estado com o reajuste. Esta opacidade enfraquece a posição governamental e alimenta a suspeita de que decisões estratégicas continuam a ser tomadas longe do escrutínio público, apesar do enorme impacto nacional.
As consequências sociais de um eventual encerramento seriam devastadoras. A Mozal emprega directamente entre 1.100 e 1.300 trabalhadores, muitos deles altamente qualificados. A estes somam-se milhares de empregos indirectos e induzidos. Empresas de transporte, logística, manutenção industrial, limpeza, segurança, restauração, pequenas oficinas e fornecedores diversos dependem total ou parcialmente da fundição. Estimativas conservadoras apontam para 8.000 a 10.000 postos de trabalho indirectamente ligados à Mozal. Além disso, entre 50 e 70 empresas médias e pequenas têm na Mozal o seu principal ou único cliente. Para muitas delas, o encerramento significaria falência quase imediata.
O impacto não seria apenas económico, mas territorial e social. A Matola e a área metropolitana de Maputo sofreriam um choque abrupto, com queda de rendimentos familiares, redução do consumo, aumento do desemprego e maior pressão sobre os já frágeis sistemas de protecção social. O Estado perderia receitas fiscais indirectas, desde o IVA até ao imposto sobre o rendimento dos trabalhadores e das empresas fornecedoras, num momento em que cada metical conta.
Há também uma dimensão simbólica e estrutural. A Mozal não é apenas uma fábrica; é um marco na paisagem industrial moçambicana. O seu complexo moldou infraestruturas, redes logísticas e até a identidade económica da região. O encerramento deixaria para trás um “monstro” industrial ocioso, de reconversão difícil e dispendiosa. Fundições de alumínio não se transformam facilmente noutro tipo de indústria, e o risco de o espaço se tornar um elefante branco é real.
Do ponto de vista ambiental e climático, o cenário é ambíguo. Localmente, o encerramento poderia reduzir emissões industriais e aliviar alguma pressão ambiental. No entanto, à escala global, o efeito é quase neutro. A procura mundial de alumínio não desapareceria; a produção apenas se deslocaria para outros países, possivelmente com matrizes energéticas mais poluentes. Assim, qualquer ganho climático interno pode ser anulado por perdas globais, tornando frágil o argumento ambiental como justificação principal para um encerramento abrupto.
Resta analisar o que o Governo efectivamente ganharia. Em teoria, preços mais altos da energia significam maiores receitas para a HCB e, indirectamente, para o Estado. Há também um ganho político e simbólico: a mensagem de que Moçambique não está disposto a eternizar contratos considerados injustos ou desajustados à realidade actual. Poder-se-ia ainda argumentar que a energia libertada poderia ser redireccionada para outros sectores ou exportada. Contudo, a pergunta decisiva permanece: esses ganhos compensam as perdas? Tudo indica que não, pelo menos no curto e médio prazo. O choque económico, social e reputacional de um encerramento total dificilmente seria absorvido apenas com receitas adicionais de energia.
É neste ponto que surgem as suspeitas de jogos ocultos. A Mozal estará realmente preparada para fechar as portas ou estará a usar o cenário do encerramento como instrumento de barganha? O Estado, por sua vez, terá subestimado o risco real de saída ou estará a apostar que a empresa recuará no último momento? Não se pode excluir a hipótese de interesses estratégicos mais amplos, ligados a decisões globais dos accionistas, que vão além da questão energética e que só se tornarão claros depois.
A história económica internacional está repleta de casos em que a ameaça de encerramento foi usada como arma negocial, bem como de casos em que os governos acreditaram tratar-se de um bluff e acabaram confrontados com uma saída efectiva e traumática. Em ambos os cenários, a ausência de transparência e de comunicação clara com a sociedade revelou-se sempre um erro grave.
O cartão amarelo ao Governo de Moçambique não é, portanto, um apelo à capitulação perante uma multinacional, nem uma defesa acrítica da Mozal. É um alerta para a necessidade de maturidade estratégica. Defender o interesse nacional exige mais do que firmeza retórica; exige cálculos rigorosos, estudos públicos, negociação técnica de alto nível e, sobretudo, uma visão clara sobre o modelo de desenvolvimento que o país pretende seguir.
Se a Mozal fechar, Moçambique perderá muito mais do que uma unidade industrial. Perderá empregos, divisas, confiança e tempo histórico. Se ficar, mas à custa de concessões feitas sem explicação transparente, o custo será a erosão da credibilidade do Estado. Entre estes dois extremos, há espaço para uma solução negociada, equilibrada e responsável. O problema é que o tempo está a esgotar-se e o país assiste, inquieto, a uma partida em que o próximo erro pode transformar um cartão amarelo num juízo definitivo da história económica nacional.

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