Cartão Amarelo Editorial as Forças de Defesa e Segurança, pelo Silêncio cúmplice em relação aos assassinatos selectivos de cidadãos moçambicanos, muitos por pensarem diferente e outros, por saberem mais do que deveriam

O silêncio que paira sobre Moçambique em relação às mortes e desaparecimentos de figuras proeminentes, jornalistas, agentes da lei e membros da oposição política é ensurdecedor. Não se trata apenas de ausência de palavras, mas da manifestação mais cruel da cumplicidade institucional e da falência de um Estado que deveria proteger a vida dos seus cidadãos. O Ministério do Interior, encarregado de velar pela segurança e pela ordem pública, não pode continuar a refugiar-se nesse mutismo. Deve prestar contas sobre a sucessão de episódios que, mais do que meros crimes, traduzem a normalização da barbárie e o enraizamento de práticas que colocam em xeque a própria ideia de democracia e de Estado de direito.

Entre os casos mais gritantes está o assassinato de Elvino Dias e Paulo Guambe, ambos membros de partidos da oposição que tombaram cruelmente e cujos assassinos provavelmente são os que deveriam os proteger. Foram mortos não apenas como indivíduos, mas como uma demonstração clara de que a democracia ainda não e suficiente para que as pessoas se sintam livres de pensar independentemente e aderir a projectos que melhor se enquadram nas suas aspirações e ideais. Também não se pode esquecer o desaparecimento subito do jornalista Arlindo Chissale que teria sido visto pela última vez nas mãos das FDS, cuja morte mesmo sem ser confirmada parece ter sido o último recurso dos algozes desta terra. A morte de um Escriba representa no sentido mais profundo, a falência da democracia como promotora da liberdade de expressão e busca pela verdade. O desaparecimento de Vintano Singano, militante político, soma-se às dezenas de delegados de partidos da oposição que perderam a vida em circunstâncias sombrias, quase sempre sem investigações sérias ou resultados públicos. A cada morte ou desaparecimento, o Estado aprofunda a sua incapacidade de dar respostas, alimentando a suspeita de que o próprio sistema esteja comprometido até à medula.

Nos últimos meses, o país tem assistido a uma nova e perturbadora vaga de violência: a execução à luz do dia de agentes do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC). O modus operandi destas mortes levanta questões inquietantes. Serão casos de limpeza interna, uma forma de eliminar elementos comprometidos com práticas obscuras? Estaremos perante uma queima de arquivos humanos, destinada a silenciar vozes que sabiam demasiado sobre esquemas ilícitos? Ou, ainda, estaríamos diante da actuação de um justiceiro independente, decidido a executar aqueles que, embora investidos da autoridade do Estado, eram acusados de envolvimento em crimes, violência e até nos temidos esquadrões da morte? Qualquer que seja a resposta, a conclusão é inescapável: a violência deixou de ser um fenómeno marginal para se tornar parte integrante do quotidiano institucional.

Essas execuções em plena luz do dia demonstram a morte da ética e da moral no seio das instituições de defesa e segurança. O que se assiste é a normalização da barbárie: matar já não choca, desaparecer com opositores já não causa indignação, e a própria morte de agentes da lei é tratada com um desdém inaceitável por parte das chefias. Quando a violência deixa de ser excepção e passa a ser regra, o Estado perde a sua autoridade moral, tornando-se indistinguível das forças criminosas que deveria combater. A normalização da violência transforma o país num território onde a lei da bala substitui a lei da justiça.

A situação ganha contornos ainda mais graves quando se analisa o enredo cinematográfico ou, como muitos dizem, metramográfico , que envolve o desaparecimento de 20 quilogramas de cocaína nos aeroportos do país. A droga havia sido detectada graças ao trabalho da Interpol, que vinha no encalço de uma cidadã brasileira utilizada como mula. O entendimento da Interpol era de que a indiciada forneceria informações cruciais para o desmantelamento de uma rede de tráfico internacional. Mas, de forma misteriosa e inaceitável, a droga sumiu dos depósitos policiais. Não se tratou apenas de um extravio logístico: foi a prova inequívoca de que a criminalidade organizada encontrou guarida dentro das próprias estruturas do Estado.

Quando a polícia é incapaz de proteger as provas de um crime ou, pior, é cúmplice no seu desaparecimento, o país deixa de ser um simples Estado fragilizado para se aproximar perigosamente da categoria de Estado narcótico. O termo não é mera figura de estilo. Um Estado narcótico é aquele onde o tráfico de drogas não é apenas tolerado, mas enraizado nas estruturas de poder, moldando decisões políticas, corrompendo instituições e determinando quem vive e quem morre. Nestes contextos, a fronteira entre governantes e criminosos desaparece, pois ambos se tornam parte de uma mesma engrenagem de enriquecimento ilícito e manutenção do poder. A situação vivida em Moçambique, onde drogas desaparecem misteriosamente sob custódia estatal e mortes de alto nível permanecem impunes, encaixa-se cada vez mais nesse conceito sombrio.

A conivência com o crime organizado mina qualquer possibilidade de construção de uma sociedade justa. O tráfico de drogas financia redes de corrupção, compra silêncios e patrocina campanhas políticas. Ao mesmo tempo, o clima de medo e violência perpetua-se, pois quem ousa denunciar acaba silenciado — seja com a bala, seja com o desaparecimento forçado. A morte de jornalistas como Arlindo Chissale e o desaparecimento de militantes como Vintano Singano não são episódios isolados; são parte de uma estratégia de intimidação que visa neutralizar qualquer ameaça ao status quo.

É precisamente por isso que a sucessão de mortes de agentes do SERNIC é tão inquietante. Longe de ser um sinal de depuração moral, ela indica que há uma disputa interna pelo controlo de esquemas ilícitos. Quando policiais são mortos por outros policiais ou por aqueles que os conhecem de perto, a mensagem é clara: a violência tornou-se a linguagem oficial de resolução de conflitos. E se os próprios agentes do Estado não têm garantias de vida, o que resta para o cidadão comum?

Este cenário revela, em última instância, a falência completa do Ministério do Interior como instituição de governo. Não se trata apenas de incompetência administrativa ou de negligência investigativa. Trata-se de cumplicidade activa com um sistema que se alimenta da morte, do medo e da corrupção. O cartão amarelo que aqui se ergue não é apenas simbólico: é um alerta para o abismo em que o país está a mergulhar. Se nada for feito, o próximo passo será a irreversível consagração de Moçambique como um Estado narcótico, onde o crime não é combatido, mas celebrado nos corredores do poder.

A democracia não sobrevive em meio à barbárie. Um governo que não protege a vida dos seus cidadãos, que abandona os seus próprios agentes e que se associa, directa ou indirectamente, ao narcotráfico, perde o direito de se apresentar como legítimo. O silêncio do Ministério do Interior perante tantos crimes é, por si só, uma confissão de culpa. E o povo, cada vez mais descrente, começa a perceber que a única lei vigente é a da sobrevivência. É este o retrato cruel de um país que normalizou a morte, a impunidade e a corrupção, e que urge ser resgatado antes que seja tarde demais

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