Bobole: Entre Nghalundi Xikocamani e a Violência Pós-Eleitoral

Um território marcado pela memória da guerra, pela chegada dos “ventos” e pelo abandono do Estado

Por muito tempo, Bobole foi apenas uma paragem na Estrada Nacional n.º 1 (EN1), um entreposto comercial moldado pela história oral dos seus fundadores e pela dureza da guerra civil. Hoje, o nome Bobole ecoa em outro registo: o da violência nas manifestações pós-eleitorais. O que explica esta passagem de um “porto seguro” na guerra para palco de destruição e confronto? Para compreender este fenómeno, revisitamos as origens de Bobole e conversamos com dois guardiões da sua memória: Rodrigues Xirindza (77 anos), fundador do mercado local, e Rafael Gaduane Manhiça (69 anos), conselheiro e também fundador do espaço comercial.

Nghalundi Xikocamani: antes de ser Bobole

A história de Bobole não começa com a sua fama actual, mas com o nome original dado pela própria comunidade. Segundo Rodrigues Xirindza, “esta zona, na verdade, chama-se Nghalundi. O nome Bobole veio por influência dos portugueses, devido ao rio que aqui passa. Mas nós sempre chamamos de Nghalundi Xikocamani, porque a água daqui corre de uma forma especial”. O mercado de Bobole nasceu em 1983, à beira do Rio Incomáti, mas logo depois foi transferido para a zona limítrofe entre Marracuene e Manhiça. Disputas entre comunidades vizinhas atrasaram a fixação definitiva. Só em 1985, ao longo da EN1, o mercado encontrou o seu lugar — e ali se mantém como coração econômico da localidade.

A guerra e a marca dos comandos

Durante o conflito armado, Bobole assumiu um estatuto peculiar. Segundo Rafael Manhiça, “com a chegada dos Comandos, Bobole tornou-se zona segura. Havia aqui um grande campo para deslocados de guerra”. A segurança, no entanto, custou caro: milicianos locais morreram em defesa da pátria, a polícia sofreu baixas pesadas e só os Comandos de Bobole conseguiram disciplinar os ‘Bandidos Armados’. Muitos desses comandos acabaram por criar raízes na comunidade, formando famílias que ainda hoje convivem pacificamente com os nativos. Essa memória de resistência colectiva ainda compõe a identidade de Bobole: um espaço de luta, onde a sobrevivência se fez pela força.

Urbanização desordenada e os “ventos”

Com o tempo, Bobole deixou de ser apenas refúgio e tornou-se destino. O crescimento urbano trouxe novos habitantes oriundos de bairros como Maxaquene e Mafalala, em Maputo, além de outras zonas da Matola. Segundo os anciãos, a chegada desses grupos alterou a dinâmica social: “as pessoas que criam problemas nas manifestações não são nativas daqui. São ventos, gente que veio com outra mentalidade. O governo deu espaço para eles se instalarem. Os nossos filhos, infelizmente, aderem a esse comportamento e depois voltam para casa trazendo vergonha às famílias”, explica Xirindza. A urbanização desordenada, marcada por construções precárias, ausência de saneamento, escolas insuficientes e falta de serviços básicos, criou uma pressão social crescente. A comunidade tradicional, estruturada pela coesão de valores locais, viu-se misturada a novos códigos culturais trazidos de fora. Essa fusão nem sempre se traduziu em harmonia; ao contrário, abriu espaço para tensões sociais e para um aumento da violência.

Bobole e a violência pós-eleitoral

Nos últimos anos, Bobole tem sido frequentemente citado como epicentro da violência nas manifestações pós-eleitorais. Carros queimados, comércio destruído, confrontos com a polícia e episódios de vandalismo são recorrentes. Mas, segundo os anciãos, a explicação não pode ser reduzida ao confronto político: “quando o meu filho participa dessas manifestações e regressa, eu tenho vergonha. Ele pode ter queimado o carro do vizinho. Não é só culpa do governo ou da polícia. É também a mentalidade desses jovens que já germinou aqui em Bobole”, desabafa Xirindza. O abandono do Estado — reflectido na falta de investimento em infraestruturas e serviços públicos — alimenta esse ambiente de frustração. A juventude, sem alternativas claras de emprego, lazer ou participação cívica, encontra nas manifestações uma forma de expressão, ainda que violenta. Este cenário não pode ser visto apenas pelas marcas de violência pós eleitoral mas também como indícios de crescimento da cultura política, especialmente no contexto democrático marcado pela intolerância político e uma governação trágica que tem lançado muitos jovens ao desemprego. Cientes da importância da estrada Nacional n 1, na economia do país, sendo que a população desta localidade usam sua posição estratégica para se fazer ouvir através do bloqueio a passagem de viaturas de mercadorias e pessoas, deixando uma imagem de caos.

Entre memória e futuro

A história de Bobole mostra como memórias da guerra, urbanização desordenada e ausência de políticas públicas eficazes se entrelaçam para moldar um presente de tensões. O espaço que outrora foi sinónimo de segurança colectiva é hoje visto como foco de instabilidade. Mas não se trata apenas de violência. Trata-se de compreender as raízes profundas que a alimentam. Ao revisitar Nghalundi Xikocamani e ouvir a voz dos seus guardiões, percebemos que Bobole é mais do que o rótulo de violência que lhe é atribuído. É também um território de resistência, de memórias partilhadas e de comunidades em busca de um lugar digno no presente. A reflexão sobre Bobole pode, assim, lançar bases para um debate mais amplo sobre os desafios do crescimento urbano em Moçambique, sobre a responsabilidade do Estado no provimento de serviços básicos e sobre o impacto da memória histórica na forma como comunidades se relacionam com a violência.

Bobole, portanto, não é apenas um ponto no mapa. É uma metáfora viva das complexidades que atravessam o país: da luta pela sobrevivência, da fragilidade institucional, da chegada de novos actores sociais e da necessidade de reconciliação entre passado e presente. Compreender Bobole é lançar um olhar crítico sobre as margens da EN1 e sobre a própria nação moçambicana.

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