Cartão Amarelo da Semana – Correios de Moçambique

O cartão amarelo desta semana vai para os Correios de Moçambique, uma instituição que, durante décadas, foi símbolo de presença do Estado, de ligação entre comunidades e de suporte ao desenvolvimento socioeconómico do país, mas que hoje é lembrada apenas como um exemplo de falência anunciada, com o seu património imobiliário sendo vendido em leilões sucessivos. O caso torna-se particularmente preocupante porque demonstra não apenas o colapso de uma empresa pública estratégica, mas também a ausência de uma visão clara e sustentável sobre o papel das infraestruturas estatais num contexto em que as transformações tecnológicas pressionam modelos tradicionais de serviços. A decisão de vender os imóveis, anos depois da insolvência, revela uma estratégia de curto prazo que privilegia a liquidez imediata em detrimento da reestruturação, da modernização e da preservação de postos de trabalho, abrindo espaço para reflexões mais profundas sobre o rumo das políticas públicas em Moçambique.

Os correios, em qualquer parte do mundo, foram concebidos como muito mais do que simples entregadores de cartas. Constituem uma rede física de grande capilaridade, com presença até nas zonas mais remotas, funcionando como o único contacto de muitas comunidades com o Estado e com a economia formal. Ao longo da história, as redes postais permitiram a circulação de informação, mercadorias, documentos oficiais, material escolar e até vacinas, em momentos em que outros serviços públicos eram escassos ou inexistentes. Essa dimensão inclusiva não desapareceu com a chegada da era digital. Pelo contrário, em muitos países, os correios foram modernizados e reconvertidos em plataformas estratégicas para sustentar serviços financeiros básicos, apoiar a digitalização do Estado e integrar o comércio eletrónico. A União Postal Universal reconhece este papel, apontando a rede postal como um dos instrumentos mais importantes para que governos avancem com a inclusão financeira, a governação eletrónica e a integração logística. É por isso que, em vários contextos, os correios continuam a ser entendidos como um ativo insubstituível e não apenas como uma empresa deficitária a ser liquidada.

Exemplos de sucesso não faltam. A Itália, através da Poste Italiane, conseguiu transformar uma rede em declínio num gigante diversificado, que hoje não só continua a garantir o serviço postal universal, mas também lidera no sector financeiro e segurador, com a PostePay consolidada como referência em pagamentos digitais. Em França, a La Poste adaptou-se à era digital tornando-se uma das principais parceiras do governo no processo de implementação da identidade digital e de serviços públicos eletrónicos, usando a sua rede de balcões e carteiros como pontos de validação presencial. O Japão, por meio da Japan Post, também seguiu o caminho da reinvenção com o plano “JP Vision 2025”, apostando em integrar serviços financeiros, seguros e logística sob a mesma marca, numa estratégia de recuperação de confiança e eficiência. Mais perto de nós, a Namíbia transformou os seus correios em instrumentos de inclusão financeira através da NamPost, que, com o seu braço financeiro PostFin, leva microcrédito, poupança e pagamentos a comunidades desatendidas pelo sistema bancário tradicional. Singapura foi ainda mais longe ao reposicionar o Singapore Post como operador regional de e-commerce e logística de última milha, operando como parceiro estratégico para pequenas e médias empresas no Sudeste Asiático.

O que une todos estes casos é o facto de nenhum desses países ter optado por simplesmente liquidar a rede e vender património como solução final. Ao contrário, perceberam que a grande riqueza dos correios está na sua capilaridade territorial e na confiança acumulada ao longo de décadas como instituição pública. Com visão estratégica, pivotaram o modelo de negócio, diversificaram receitas, criaram parcerias público-privadas e estabeleceram metas claras de desempenho, ao mesmo tempo em que mantiveram os postos de trabalho e ampliaram os serviços prestados. Essa experiência comparada mostra de forma clara que vender património e encerrar serviços não é destino inevitável, mas resultado de escolhas políticas.

Em Moçambique, a opção foi a mais fácil: encerrar operações, declarar insolvência e proceder à venda de imóveis, muitos deles localizados em zonas estratégicas e centrais das cidades. Esta decisão tem implicações profundas. Primeiro, porque significa a perda de uma infraestrutura nacional que poderia servir como base para a expansão de serviços públicos digitais, financeiros e logísticos. Segundo, porque desvaloriza o papel inclusivo da rede postal, ignorando que milhares de cidadãos, sobretudo nas zonas rurais, continuam a necessitar de pontos físicos de contacto com o Estado, seja para receber uma pensão, levantar uma certidão ou aceder a um serviço básico. Terceiro, porque revela um padrão de governação em que soluções estruturais são substituídas por respostas imediatistas, de natureza patrimonial, sem considerar os impactos de longo prazo no desenvolvimento e na coesão social.

A venda massiva de património dos Correios de Moçambique não pode ser vista apenas como um episódio de liquidação empresarial. É, acima de tudo, um espelho de como o país lida com os seus desafios tecnológicos e institucionais. É certo que o avanço das tecnologias móveis, como o M-Pesa, o mKesh ou o e-Mola, tornou obsoletas muitas das funções tradicionais dos correios, sobretudo no que diz respeito a pagamentos e remessas. É verdade também que o correio tradicional de cartas caiu drasticamente devido à migração para plataformas digitais. Contudo, essas transformações, que pressionaram correios em todo o mundo, foram encaradas por outros países como uma oportunidade de reinventar o serviço e não como pretexto para extingui-lo. Em Moçambique, ao não se explorar caminhos de diversificação e modernização, perde-se a oportunidade de transformar os correios numa ferramenta de política pública para a era digital, algo que seria extremamente útil num país com forte desigualdade social, baixa penetração bancária e carência de infraestruturas.

Alternativas existiam. Poder-se-ia ter reduzido a rede física deficitária através de modelos de franquia, transformando pequenos postos em agências operadas por comerciantes locais, mas preservando o código postal e a rota do carteiro. Seria possível converter os balcões em centros de serviços múltiplos, prestando apoio a programas de governo eletrónico, pagamentos sociais e emissão de documentos. A carteira de imóveis poderia ter sido gerida por meio de um mecanismo de venda e arrendamento seletivo, garantindo a preservação de ativos estratégicos e alienando apenas excedentes. Com parcerias com bancos de desenvolvimento e operadores de telecomunicações, seria viável relançar serviços financeiros básicos, microcrédito produtivo e inclusão digital, aproveitando a confiança que a marca Correios ainda detém junto a muitas comunidades. Ao invés de um encerramento abrupto, uma reestruturação com metas claras de desempenho, auditadas publicamente, teria permitido não só manter empregos, mas também transformar os correios num actor competitivo, conectado ao comércio eletrónico e à economia digital.

Ao optar pela via da liquidação, o governo e os gestores responsáveis passam a mensagem de que preferem soluções rápidas e aparentemente fáceis, mesmo que isso comprometa a capacidade futura do país de estruturar políticas públicas sustentáveis. O risco é que se abra um precedente perigoso: sempre que uma empresa pública enfrentar dificuldades estruturais, a solução passará a ser vender património e encerrar postos de trabalho, em vez de reformar, inovar e reestruturar. Essa lógica não só fragiliza a soberania institucional do Estado, como também limita o futuro da economia nacional, que fica sem infraestruturas estratégicas que poderiam ser alavancadas em momentos de transformação.

Ao observar o caso dos Correios de Moçambique, não se pode deixar de notar um sentimento de perda coletiva. Perde-se uma rede de proximidade que poderia servir de base para políticas de inclusão. Perde-se uma oportunidade de integrar o país na economia digital de forma mais equilibrada. Perde-se, sobretudo, a confiança de que instituições públicas possam ser reformadas para responder às exigências do século XXI. Um cartão amarelo é, por definição, um aviso antes da penalização máxima. E neste caso, o aviso vai para a lógica de gestão pública que sacrifica o longo prazo pelo curto, a estrutura pelo imediato, a reinvenção pela liquidação. Ainda é possível corrigir o rumo, mas isso exigiria coragem política, visão estratégica e compromisso com a inclusão social, três dimensões que parecem, por agora, estar ausentes da equação.

 

 

 

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