Cartão amarelo ao Município da Matola: a desordem nos cemitérios é o espelho da falência urbana e moral da gestão municipal

Na edição passada do «cartão amarelo» abordamos sobre a gestão das vias de comunicação do município da Matola, mas não tendo sido possível abordar a questão dos cemitérios que pela sua importância, optamos por isolar propositadamente de forma a tratar com maior profundidade. Num país com extensas terras por explorar, é inaceitável que se exumem corpos no cemitério para enterrar outra pessoa, isso porque o cemitério já não tem espaço. Os cemitérios da Matola, que deveriam representar espaços de serenidade, respeito e descanso, transformaram-se em lugares de desordem, abandono e dor agravada. A situação vivida nestes espaços é insustentável, vergonhosa e moralmente reprovável. A gestão municipal tem falhado de forma flagrante, condenável e contínua, ao permitir que se instalasse um verdadeiro colapso nos cemitérios do município. Por estas razões, é com convicção ética e indignação cívica que se ergue este cartão amarelo, como alerta público à inércia, à desorganização e à insensibilidade institucional.

Os cemitérios da Matola estão lotados, saturados, esgotados. E ainda assim continuam a acolher novos funerais normalmente. Isto não é apenas um dado técnico, é um escândalo ético, o declínio moral na gestão publica, quando os utentes já não podem levantar sua voz para reclamar. Continuar a enterrar corpos em espaços que já não comportam dignamente novas sepulturas é agir com total desrespeito pela memória dos mortos e pela dor dos vivos. O exemplo mais gritante é o do Cemitério da Machava Bedene, vulgarmente conhecido como Gonondzuene. Apesar de estar visivelmente superlotado, o local não só continua a receber enterros, como o faz sem qualquer critério claro, sem ordem, sem fiscalização. Túmulos estão praticamente encostados uns aos outros. Os corredores desapareceram. Já não há caminhos definidos. A vegetação tomou conta do espaço, dificultando a circulação e transformando o que deveria ser um local de recolhimento em um labirinto de matas.

As famílias que ali se dirigem, na tentativa de prestar homenagem aos seus entes queridos, enfrentam um verdadeiro percurso de obstáculos. Urnas são carregadas com esforço redobrado entre arbustos, espinhos e irregularidades no solo. Em vez de serem acompanhados por um momento solene de despedida, os enlutados são obrigados a enfrentar o desconforto, a confusão e até a indignação. Esse cenário é inaceitável e mostra que a dignidade da morte deixou de ser prioridade para os que gerem o município.

Mais doloroso ainda é o fenómeno das exumações arbitrárias. Há relatos frequentes de famílias que se deslocam aos cemitérios para visitar os túmulos dos seus familiares e descobrem que os restos mortais foram retirados sem aviso. Campas foram destruídas, placas removidas, restos levados para lugar incerto. E tudo isso sem que tenha havido uma comunicação oficial, sem consulta, sem explicação. É uma violência silenciosa, mas devastadora. O luto é reaberto. A dor é multiplicada. Não é apenas um erro técnico ou administrativo, é uma agressão directa ao direito das famílias à memória, ao respeito e à verdade. Uma gestão pública que não respeita os mortos, tampouco pode cuidar bem dos vivos.

Essa realidade choca ainda mais quando se observa o estado geral dos cemitérios. Além da saturação física, reina a desorganização urbanística. Parcelamentos foram ignorados. A vegetação cresce descontroladamente. Campas são construídas fora de padrão, encavalitadas, e muitas sem qualquer marcação visível. A ausência de sinalização adequada torna quase impossível localizar uma campa específica sem ajuda, e mesmo os trabalhadores do local muitas vezes não sabem onde se encontram determinados sepultamentos. O abandono é evidente. E esse abandono revela não apenas a falta de capacidade administrativa, mas a total ausência de um sentimento de respeito institucional pelo sagrado que é enterrar os nossos mortos.

O Cemitério do Eugénio, no bairro São Dâmaso, é outro caso paradigmático. Um espaço relativamente novo, mas que já caminha a passos largos para o mesmo destino de caos dos demais. A desorganização é visível. As campas estão a ser erguidas sem qualquer planeamento ou alinhamento. Não há vedação. Crianças atravessam o cemitério no seu caminho da escola, brincando entre túmulos, conversando alto durante cerimónias fúnebres. Moradores usam o espaço como atalho. Não há vigilância, não há controlo. O espaço funerário foi naturalizado como se fosse um terreno abandonado qualquer. Perdeu-se o limite simbólico entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. E isso é profundamente alarmante. Porque demonstra que os nossos valores culturais, religiosos e éticos estão a ser ignorados, ou pior, destruídos, por uma lógica de desleixo e permissividade administrativa.

O que acontece nos cemitérios é, na verdade, o espelho do que se vive nos bairros da Matola. O crescimento urbano desorganizado, a expansão anárquica dos assentamentos, a ausência de fiscalização, a tolerância à informalidade — tudo isso se repete na gestão dos cemitérios. É a mesma lógica: ausência de planificação, improviso institucional, permissividade sem responsabilidade. O que vemos nos cemitérios é, portanto, uma consequência directa da falência da planificação urbana. E pior: uma prova de que os gestores municipais não apenas ignoram os sinais do colapso, mas muitas vezes são cúmplices, pois fingem não ver o descalabro, mesmo quando caminham sobre ele.

Não se trata apenas de uma crítica técnica. Trata-se de uma denúncia ética. A forma como tratamos os nossos mortos diz muito sobre o valor que damos à vida. Se nem no fim conseguimos garantir paz e respeito, que tipo de sociedade estamos a construir? Uma sociedade que não respeita a memória dos seus, não honra os seus ancestrais, não respeita o luto alheio, é uma sociedade em falência moral. A morte deve ser tratada com solenidade, com dignidade, com humanidade. Os cemitérios devem ser espaços sagrados, protegidos, limpos, organizados, vigiados. A desordem que reina na Matola é, por isso, mais do que uma falha de gestão. É um sintoma grave de erosão do sentido de responsabilidade pública.

Por isso, é necessário agir com urgência. O Município da Matola deve suspender, de imediato, os enterros em cemitérios lotados como o da Machava Bedene. Deve implementar um plano de expansão e criação de novos cemitérios, bem localizados, vedados e com um plano claro de urbanização. Deve rever o sistema de cadastro das campas, criando um registo digital e físico que permita localizar facilmente qualquer sepultura. Deve instituir procedimentos claros e legais para exumações, com obrigatoriedade de aviso formal e consentimento das famílias. Deve limpar, vedar, sinalizar e reorganizar os cemitérios já existentes. Deve formar os trabalhadores funerários em práticas éticas e humanizadas. Deve, sobretudo, devolver aos cidadãos o direito à dignidade, tanto na vida como na morte.

Este cartão amarelo não é gratuito, nem simbólico apenas. É um grito. Um grito por respeito. Um grito por memória. Um grito por responsabilidade. Porque quando os mortos não têm paz, é sinal de que os vivos estão a viver num sistema profundamente doente.

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