Cartão amarelo ao governo de Moçambique: afinal quem controla as finanças deste país?

Moçambique está num ponto de inflexão: com reservas de gás estimadas em centenas de trilhões de pés cúbicos no Rovuma, abre-se uma janela de oportunidade para que a riqueza natural se transforme em investimento sustentável. Mas entre a promessa e a prática está um sistema financeiro público fragilizado, permeável a usos discricionários e a capturas de poder. O escândalo dos US$33,6 milhões retirados (ou alegadamente) do fundo soberano denunciado pelo Tribunal Administrativo, revela fissuras profundas no desenho institucional. Ao mesmo tempo, denúncias de “compensações” milionárias a empresas ligadas ao poder e a resposta inerte dos órgãos de fiscalização mostram uma dinâmica de controlo que vai além de “falta de alinhamento”: aponta para oligarização dos recursos públicos e subordinação de instituições ao poder executivo ou a elites que operam nas sombras.

Entre 2022 e 2024, o Estado moçambicano arrecadou cerca de US$165 milhões (aproximadamente 10,8 mil milhões de meticais) em impostos sobre a produção de gás e petróleo. Desses, US$33,6 milhões, cerca de 2,2 mil milhões de meticais, foram imediatamente canalizados para o Orçamento do Estado (OE), segundo informações governamentais. A lei que cria o fundo soberano (FSM), aprovada em Dezembro de 2023 e operacionalizada em 2024, prevê que 40% das receitas desse sector sejam destinadas ao fundo e 60% ao OE.

O Tribunal Administrativo, ao auditar as contas de 2024, detectou irregularidades que revelam uma divergência entre o que foi declarado e o que foi efectivamente “ declarado”. Segundo o relatório do Tribunal, dos US$33,6 milhões pagos pela Mozambique Rovuma Venture (MRV), joint venture entre ExxonMobil, ENI e CNPC — apenas US$24,6 milhões foram confirmados como integrados ao Orçamento do Estado. Os cerca de US$9 milhões restantes não puderam ser certificados por “ausência de guias de recolha, documentos essenciais para o desdobramento da receita e confirmação da sua entrada na Conta Única do Tesouro (CUT)”. O Tribunal exige que o governo reorganize a conta geral do Estado, apresente clarificações e refaça os balanços com precisão, simplicidade e transparência.

A justificativa oficial, via governo, é que esses US$33,6 milhões referem-se a receitas anteriores à lei do FSM. O Secretário de Estado do Tesouro e Orçamento, Amílcar Tivane, afirma que, antes da lei que institui o FSM estar em vigor, as receitas de imposto de produção foram aplicadas no OE conforme a legislação então vigente — logo, não houve desvio ou uso irregular. Agora, segundo ele, com a operacionalização do FSM (dependente da assinatura de um acordo de gestão entre o Tesouro e o Banco de Moçambique), os recursos serão alocados entre OE e fundo seguindo a regra 60/40. Em 23 de outubro de 2025, o saldo da conta transitória do FSM era de US$204,5 milhões (aproximadamente 13,4 mil milhões de meticais), fruto de receitas acumuladas de gás.

Mas a contradição central permanece: o governo reconhece que os US$33,6 milhões foram usados no orçamento do Estado, antes da operacionalização plena do FSM. Essa prática de justificar retroactivamente usa o argumento da transição legal como blindagem de agência discricionária. A consequência: o que deveria constituir poupança futura para estabilizar a economia torna-se instrumento de flexibilidade orçamental extemporâneo, e sujeito a captura. Neste contexto, o “dizer que não foi transviado” acaba por funcionar como um dispositivo funcional à manutenção do controle executivo.

Além disso, não basta questionar as grandes receitas do gás. A gestão orçamental corrente já exibe padrões de favorecimento específico que sugerem captura. Circula, por exemplo, o relato de que “500 e tal milhões de meticais” foram pagos como compensação a uma gasolineira ligada aos filhos de um ex‑presidente e à presidente do Conselho Constitucional enquanto cerca de 20 outras empresas similares foram excluídas. Embora não existam fontes oficiais que confirmem publicamente todos os detalhes, essa narrativa repetida no discurso da sociedade civil, do activismo e da mídia alternativa revela como a opacidade institucional permite operações assimétricas de compensação privada com recursos públicos.

Quando se observa que o Tribunal Administrativo identificou irregularidades nas contas de 2024, contas desalinhadas, violações de lei, ausência de documentos essenciais e discrepâncias entre instituições como INAMI, INP e a Autoridade Tributária, a questão não é só técnica: é política. O TA apontou falta de coordenação entre os órgãos de regulação do sector dos recursos naturais e fragilidade no controle da informação, com empresas que poderiam operar fora do escrutínio fiscal e discrepâncias nos dados divulgados por diferentes instituições.

Se órgãos de fiscalização identificam falhas, mas não conseguem impor sanções claras ou impedir os gastos duvidosos, isso sugere que o controle real das finanças não está nas mãos da Assembleia da República, dos auditores ou da sociedade civil, mas de circuitos de decisão paralelos, onde o poder executivo ou interesses ligados a ele manipulam os fluxos à beira da legalidade formal.

Este padrão de governação disfuncional ecoa historicamente em Moçambique. O caso das “Dívidas Ocultas” é talvez o exemplo mais dramático: trata-se de empréstimos contraídos secretamente entre 2013 e 2014, sobretudo por meio de empresas estatais criadas para ocultar garantias, culminando num desvio de centenas de milhões de dólares. A magnitude desse escândalo, que ainda gera litígios, processos judiciais internacionais e embaraços diplomáticos, deixou claro que o Estado moçambicano pode sustentar obrigações financeiras milionárias com pouco escrutínio. O impacto económico e reputacional foi devastador: o país teve dificuldades em obter financiamento externo, sofreu perda de confiança e viu seu risco soberano disparar.

Nesse contexto, qualquer operação de alta magnitude, como os US$33,6 milhões ou as supostas compensações a empresas ligadas a elites, passa a ser lida pelos cidadãos não apenas como “gestão discreta”, mas como continuação da prática de “finanças por dentro do poder”. Em países com instituições vulneráveis, o exercício do poder público frequentemente se dá por meio de redes que se aninham entre elites políticas, judiciais, empresariais e tecnocráticas, usando a retórica legal para legitimar operações que desfavorecem o interesse público.

Portanto, o “cartão amarelo” emergente desse debate não se refere apenas ao episódio pontual: é um alerta de que a governança das finanças públicas está desnivelada, permitindo que decisões estratégicas sejam tomadas por atores com privilégios de acesso. O uso dos recursos públicos, fosse via receitas do gás ou via compensações sectoriais, é politizado de forma a favorecer interesses privados, enquanto os mecanismos de controle não têm força suficiente para se impor.

O episódio dos US$33,6 milhões, e a reacção pública subsequente é mais do que uma crise de legitimidade: é uma janela que vende à vista o funcionamento de um sistema onde os grandes fluxos financeiros podem ser realocados com mínima supervisão, desde que haja justificativas retroactivas. Quando essas justificativas se baseiam em cronologias legais (ex: “antes da lei do FSM”) ou em “contas transitórias”, abre-se uma brecha para captura institucional.

Moçambique não precisa de mais retórica, mas de regras rígidas e mecanismos institucionais fortes que obriguem transparência e responsabilidade. Se o poder ainda está no executivo, que ao menos funcione como observatório real. Se as elites capturam o Estado, que sejam constrangidas pela lei, não apenas pela retórica. O “cartão amarelo” não se apaga com justificativas: precisa gerar um acelera o freio institucional para reequilibrar o poder e tornar o controlo financeiro algo de fato público, e não privilégio de poucos. A hora de fortalecer, não apenas de reformar, é agora, antes que as reservas de gás sejam dissipadas no vazio da impunidade.

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