CARTÃO AMARELO AO GOVERNO DA ÁFRICA DO SUL E A CYRIL RAMAPHOSA

A África Austral tem carregado, ao longo de décadas, um legado de luta conjunta, solidariedade entre povos e construção paciente de pontes políticas e sociais que sustentaram a sobrevivência de muitos Estados durante o apartheid, a guerra fria e os períodos mais duros de instabilidade política. No entanto, esse legado tem sido colocado em causa pela forma como o governo da África do Sul, sob liderança de Cyril Ramaphosa, tem conduzido as suas relações com os países vizinhos, em especial com Moçambique. Este cartão amarelo não é uma manifestação de desentendimento diplomático, nem um exercício de hostilidade gratuita; é uma chamada de atenção necessária para um governo que parece esquecer que o peso económico nunca poderá substituir o peso moral da história, nem a responsabilidade política de liderar com equilíbrio uma região tão sensível como a África Austral.

Os acordos económicos estruturantes, celebrados com grande entusiasmo em fóruns públicos, são sempre apresentados como provas de integração e desenvolvimento regional. Mas tais acordos perdem legitimidade quando, ao mesmo tempo, as relações sociais e humanas entre os povos são negligenciadas e, na prática, deterioradas. O discurso político acena com cooperação, mas a fronteira de Lebombo e outras portas de entrada contam outra história: filas intermináveis, humilhações recorrentes, tratamento desigual e atitudes que, muitas vezes, ultrapassam a simples defesa da soberania e se aproximam perigosamente de declarações implícitas de superioridade. Torna-se difícil ignorar o contraste entre o discurso afável do Presidente sul-africano e a prática diária das suas instituições de controlo fronteiriço, que continuam a tratar cidadãos moçambicanos e de outros países africanos como um incómodo a ser mantido sempre à distância, quase como se não fossem parte essencial da própria economia sul-africana.

É aqui que se revela o maior paradoxo: a África do Sul depende, e sempre dependerá, dos seus vizinhos. Depende para o comércio, para a circulação de mão de obra, para a segurança regional e para a estabilidade política interna. Mesmo assim, o governo sul-africano parece gerir essas relações com uma mistura de arrogância e cálculo político, como quem sabe que os vizinhos, frágeis e economicamente vulneráveis, não têm capacidade de confrontar a injustiça abertamente. E é precisamente essa postura — esse silêncio cúmplice dos demais governos da região — que faz com que um problema político se transforme num problema social profundo, com impacto direto na dignidade dos povos.

A degradação das relações sociais entre Moçambique e a África do Sul não é um acaso nem resultado de percepções isoladas. Está materializada em episódios concretos, e um dos mais graves é a famigerada Operação Dudula. Movida por um populismo perigoso e uma retórica que estimula o ódio, a operação tem servido de catalisador de violência contra estrangeiros, mascarando frustrações internas com a falsa narrativa de que os problemas socioeconómicos da África do Sul têm origem nos imigrantes, particularmente nos africanos da região. É uma narrativa frágil, construída sobre preconceitos e uma desconexão total dos factos, mas que encontrou terreno fértil num ambiente político permissivo e, em muitos momentos, cúmplice.

A Operação Dudula mostrou como a violência pode ser normalizada quando não há liderança firme e quando o Estado tolera, ainda que de forma indireta, movimentos que colocam em risco vidas humanas e alimentam ressentimentos desnecessários. Moçambicanos e zimbabueanos tornaram-se alvos frequentes de agressões, perseguições e campanhas de intimidação. Estas ações não apenas ferem indivíduos; ferem a própria história da África do Sul, que um dia dependeu da solidariedade desses mesmos povos para se libertar do apartheid. É alarmante observar que essa memória coletiva parece estar a ser apagada, substituída por discursos nacionalistas que alimentam divisões em vez de construir pontes.

O cartão amarelo estende-se igualmente à forma como o governo sul-africano utiliza a gestão das fronteiras como instrumento político. As dificuldades constantes impostas aos viajantes moçambicanos não são apenas problemas administrativos; são formas de desrespeito que se repetem ao ponto de se tornarem uma política não declarada. O tratamento diferenciado, as inspeções abusivas, a desconfiança automática e o excesso de burocracia são sinais de que a integração regional ainda está longe de ser realidade. Uma região verdadeiramente integrada não pode permitir que a fronteira funcione como local onde a dignidade humana é opcional.

Cyril Ramaphosa, como líder de uma potência regional, deveria assumir a responsabilidade de promover um ambiente de cooperação genuína, onde a liberdade de circulação, o respeito pelos tratados regionais e a valorização das relações humanas sejam prioridades. Contudo, o que se vê é um comportamento ambíguo: de um lado, reuniões formais onde se reforça o compromisso com a SADC; do outro, uma prática interna que contradiz esses compromissos. Quando o discurso não corresponde à realidade, a confiança perde-se, e a liderança torna-se apenas simbólica, sem capacidade de inspirar ou unir.

Os governos da região, incluindo Moçambique, carregam parte dessa responsabilidade. Assistem, com uma impavidez preocupante, à degradação do bem-estar dos seus próprios cidadãos em território sul-africano, como se se tratasse de um preço inevitável a pagar pela manutenção de relações económicas. Esta passividade torna-se ainda mais grave quando se percebe que o sofrimento dos cidadãos, o chamado Ze Povinho, é tratado como um assunto menor. Enquanto o dinheiro circula entre as elites e os acordos são assinados com pompa, as populações são deixadas à sua própria sorte, enfrentando discriminação, violência e humilhação.

Um cartão amarelo serve para alertar antes que o jogo descambe para um conflito maior. Este aviso não é apenas para a África do Sul, mas também para os governos da região que preferem o silêncio. A integração regional não pode ser construída apenas com protocolos de intenções; exige coragem política, respeito mútuo e um compromisso firme com a dignidade humana. A violência da Operação Dudula é um sintoma de uma doença mais profunda: a incapacidade de os Estados protegerem os princípios que dizem defender.

As relações históricas entre Moçambique e África do Sul são demasiado importantes para serem deixadas à mercê de tensões sociais que poderiam ser evitadas com liderança responsável. É necessário resgatar o espírito de solidariedade que marcou a libertação da região. É preciso que a África do Sul compreenda que a sua liderança só será reconhecida se for exercida com humildade, respeito e sentido de comunidade.

Este cartão amarelo é, portanto, um apelo urgente a Ramaphosa e ao seu governo: que reajam, que repensem a sua postura e que reconstruam a relação com os países vizinhos com base no respeito. Se a região deve caminhar para um futuro de integração verdadeira, então os povos precisam ser vistos como protagonistas, e não como obstáculos. Só assim se poderá transformar a África Austral num espaço de cooperação real, onde a dignidade humana não seja negociável e onde a história de luta conjunta não seja traída pela arrogância política ou pela indiferença diplomática.

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