
O Conselho Constitucional (CC) de Moçambique deveria ser, por natureza e mandato, a instância máxima da justiça constitucional, o árbitro sereno e firme que, em momentos de tensão política e social, ergue a Constituição como escudo contra abusos, arbitrariedades e tentativas de captura do Estado. Porém, o que se tem visto ao longo dos anos é uma metamorfose perversa: os guardiões da Constituição transformaram-se em convivas silenciosos no banquete dos abutres que devoram o pouco que resta da dignidade democrática moçambicana.
Este Cartão Amarelo não é apenas um exercício de denúncia; é um grito de alerta para a nação. Porque o CC, ao invés de se constituir como baluarte da lei, escolheu o caminho da cumplicidade, actuando mais como advogado de defesa do regime do que como juiz imparcial da República.
A raiz desta crise constitucional encontra-se na acumulação de funções do Presidente da República, que, ao mesmo tempo, exerce o cargo de Presidente de um partido político, o partido no poder. Esta fusão de papéis mina a essência do Estado de Direito democrático, porque coloca os interesses partidários acima dos interesses nacionais.
Quando o Chefe de Estado preside às reuniões do partido, define estratégias eleitorais, orienta militantes e coordena campanhas políticas, ele já não age como Presidente de todos os moçambicanos, mas como comandante supremo de uma facção. O conceito de nação esvazia-se e torna-se sinónimo de militância partidária. O cidadão deixa de ser cidadão para ser classificado em dois blocos: os que são do partido e, portanto, considerados "filhos legítimos da pátria", e os que estão fora, condenados a serem estrangeiros no próprio país.
Ora, a Constituição da República, ao estabelecer o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e ao definir o Presidente como símbolo da unidade nacional, exige que o cargo seja exercido de forma suprapartidária. Mas quando essa acumulação é normalizada, o espírito constitucional é destruído.
Ao invés de intervir, ao invés de demarcar as fronteiras entre o Estado e o partido, o CC legitima esta fusão. O silêncio cúmplice diante da acumulação de funções não é uma neutralidade institucional: é uma tomada de posição a favor da partidarização do Estado.
Nas últimas eleições gerais, marcadas por fraudes documentadas, violência policial, assassinatos de activistas e manipulações descaradas de resultados, o CC foi chamado a decidir. Era o momento de mostrar à nação e ao mundo que ainda restava um espaço de justiça imparcial em Moçambique. Mas o que fez o CC? Carimbou os resultados, ignorou as provas e apresentou ao país uma sentença que soou mais como nota de imprensa do partido no poder do que como decisão de um tribunal supremo.
Não se tratou apenas de uma decisão jurídica; tratou-se de um ato político. Um ato que ratificou a tensão nacional, aprofundou a crise de confiança entre cidadãos e instituições, e consolidou a percepção de que em Moçambique não existe separação entre justiça e poder político.
A democracia, em qualquer país, é um processo frágil, que precisa ser protegido pelas instituições. Quando estas instituições falham, o que sobra é apenas a forma sem conteúdo, o ritual sem substância. Moçambique tem vivido exactamente isso: eleições regulares, discursos de legitimidade, proclamações oficiais de vitória e de paz, enquanto na prática, a exclusão, a fraude e a violência destroem os fundamentos democráticos.
O CC, ao chumbar a reclamação da sociedade civil contra a acumulação de funções do Presidente, mostrou sem disfarces a sua opção: ficar ao lado do poder e contra o povo. Mostrou também que a democracia em Moçambique ainda tem um longo caminho a percorrer até que seja, de facto, um instrumento de inclusão, igualdade e participação.
Hoje, os cidadãos percebem que recorrer ao CC é como bater à porta de um juiz que já redigiu a sentença antes mesmo de ouvir o caso. Essa descrença é mortal para qualquer Estado de Direito, porque destrói a última esperança de que a lei possa prevalecer sobre a força.
Quando a presidente do CC, acompanhada dos demais juízes, decide vestir a toga não como símbolo de independência, mas como uniforme partidário, ela transforma-se naquilo que a memória colectiva já inscreve: advogada do diabo. Advogada de um regime que pratica o assassinato gradual da democracia, que substitui o governo do povo pelo governo de um partido.
A cumplicidade do CC não se limita às eleições. Ela é estrutural. Está presente na forma como interpreta a Constituição, sempre a favor do poder estabelecido; está presente no silêncio diante das violações de direitos humanos; está presente na recusa em reconhecer que a democracia não pode ser reduzida a um ritual de urnas manipuladas.
O preço desta cumplicidade é alto. Paga-se em tensão social, em protestos reprimidos, em mortes de cidadãos que ousam contestar, em exílios forçados de activistas e jornalistas, em descrença generalizada nas instituições. E paga-se, sobretudo, em fragmentação da nação. Porque quando o Estado se confunde com um partido, os que estão fora desse partido deixam de se sentir parte da pátria.
O título deste Cartão Amarelo não é gratuito. Fala de um banquete de abutres, porque o que se assiste em Moçambique é a devoração lenta e contínua do corpo frágil da democracia. Os abutres são os que se alimentam do cadáver da justiça, os que transformam as esperanças populares em ossos secos, os que se banqueteiam com o poder sem se importarem com o sofrimento do povo.
O CC, ao invés de afastar os abutres, senta-se à mesa com eles. Participa da refeição, divide os despojos, celebra as vitórias que não são vitórias do povo, mas derrotas colectivas da nação.
E enquanto isso, as ruas de Maputo, Beira, Nampula e tantas outras cidades ecoam a revolta silenciosa de milhões que sabem que não há justiça, que não há democracia, que não há Estado que os proteja.
Mas se a democracia é hoje vítima de assassinato gradual, também é verdade que a história não termina aqui. Enquanto o CC se ajoelhar perante o poder político, os grupos sociais, a sociedade civil organizada, os jovens e as comunidades locais continuarão a lutar. Porque a liberdade nunca foi oferecida; sempre foi conquistada.
A cada decisão injusta, a cada sentença partidária, o CC aumenta a dívida com a história. E essa dívida será cobrada. A memória colectiva é implacável, e aqueles que hoje se protegem sob a sombra do poder, amanhã terão os seus nomes gravados como cúmplices do desmoronamento democrático.
Este Cartão Amarelo ao Conselho Constitucional não é apenas simbólico. É um aviso político, ético e histórico. É o lembrete de que os juízes que deveriam proteger a Constituição estão, na verdade, a servir de verdugos da democracia. É a denúncia de que a presidente do CC veste a toga não para defender o povo, mas para legitimar o regime.
Enquanto assim for, Moçambique continuará a viver num sistema em que a democracia é uma palavra vazia, a justiça um espectáculo encenado, e a liberdade um sonho adiado.
Mas também é a certeza de que este estado de coisas não é eterno. O povo moçambicano já mostrou, em diferentes momentos da sua história, que é capaz de resistir, de lutar e de conquistar. A luta pela liberdade será uma constante, e o dia virá em que os abutres serão expulsos do banquete.
Até lá, este Cartão Amarelo fica registado, não como um gesto isolado, mas como parte da memória viva de um povo que não aceita ser silenciado.

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