Cartão amarelo a População Urbana Pela forma desumana como gere os seus resíduos sólidos

O desenvolvimento na contemporaneidade exige que se olhe para a questão de preservação ambiental com mais responsabilidade. O consumismo típico de sociedades liberais deve encontrar freios internos e cada sociedade deve ser responsável de os criar e materializar. Ao mesmo ritmo que aumenta o número de pessoas abastadas, cresce também o número de miseráveis e paupérrimos que tem que recorrer a meios extremos para sua subsistência. É a propósito disso que decidimos admoestar este amarelo aos centros urbanos suas gentes, pela forma como descartam seus resíduos sólidos em particular os restos de alimentos produzidos diariamente. Para muitos, trata- se apenas de lixo ou restos descartáveis e sem nenhuma utilidade. Para outros, no entanto, trata-se de uma oportunidade de sobrevivência. O que para uns é repulsa, para outros é esperança. O que uns deitam fora com nojo, outros recolhem com gratidão.

Nas cidades moçambicanas, como Maputo, Beira e Nampula, milhares de pessoas vivem nas ruas. Embora não existam estatísticas nacionais actualizadas e consistentes, estudos e reportagens locais estimam que entre 10.000 a 20.000 pessoas vivem em situação de rua, e uma parte significativa sobrevive recorrendo aos contentores de lixo em busca de alimentos e materiais recicláveis. Muitos deles são crianças, jovens e idosos que enfrentam uma miséria que a modernidade urbana insiste em ignorar.

Em contacto com os contentores — onde são misturados restos de comida com produtos de limpeza, pesticidas, venenos para ratos e baratas — estas pessoas arriscam diariamente a própria vida. Em nome da “higiene”, pulveriza-se veneno, ignorando o fato de que este “lixo” é a última esperança de alimento para muitos. A organização internacional WasteAid estima que, em países em desenvolvimento, milhares de pessoas morrem todos os anos devido à ingestão acidental de alimentos contaminados em lixeiras, ou por infecções e doenças causadas por má gestão de resíduos.

Em Brasil, por exemplo, uma pesquisa feita pela ONU sobre populações vivendo nas ruas revelou que em média 7 pessoas em situação de rua morrem por dia, muitas em circunstâncias não esclarecidas, mas comumente relacionadas à fome, doenças infecciosas e intoxicações. No Quênia, o mesmo relatório indica que a falta de segregação de resíduos nas áreas urbanas contribui para que muitas crianças que sobrevivem em lixeiras acabem envenenadas ou contaminadas.

Outros países têm avançado com práticas mais humanas. Na Alemanha, a separação obrigatória dos resíduos domésticos (orgânicos, recicláveis, perigosos, entre outros) não só protege o ambiente, mas permite a actuação segura de catadores, que são integrados ao sistema com direitos laborais. Em São Francisco, nos EUA, existe um programa de compostagem urbana onde os resíduos alimentares são recolhidos separadamente e reaproveitados, e os usuários de contentores destes contentores tem zonas seguras de trabalho. No Japão, há políticas rígidas de segmentação de resíduos e campanhas de empatia pública sobre os trabalhadores informais do lixo.

Em Moçambique, no entanto, a gestão de resíduos ainda é indiferente à vida humana. Os contentores de lixo continuam a ser locais de risco extremo, e as mortes de moradores de rua são muitas vezes causadas por infecções, ingestão de substâncias tóxicas ou ferimentos em meio ao lixo, e para piorar estes problemas são tratados como destino inevitável da pobreza sem o devido apoio resultando muitas vezes em mortes que poderiam ser evitadas, o que demonstra em ultima analise falta de sensibilidade, falta empatia e falta também estratégia para minimizar a dor de pessoas que já são vitimas das desigualdades sociais.

É neste contexto de desumanização que emerge uma nova geração de jovens activistas, criativos e inconformados, que usam o seu talento artístico, tecnológico e social para chamar a atenção dos citadinos. Jovens que fazem arte com lixo, campanhas nas redes sociais, vídeos, exposições, e que levam a mensagem para além do óbvio: o lixo é também um espelho da nossa humanidade. Esses jovens são sementes de esperança. Eles mostram que é possível sensibilizar as comunidades urbanas a adoptarem posturas mais empáticas com os menos favorecidos, e que a transformação começa com pequenos gestos e mudanças de comportamento.

Esse activismo criativo pode e deve servir de antessala para algo maior. Pode inspirar políticas públicas voltadas para a comunicação para a mudança de comportamento. Pode alimentar movimentos comunitários que defendam modelos de apoio a crianças e adultos vulneráveis que vivem da colecta de lixo. Pode ainda pressionar as autoridades a agir com mais responsabilidade e planeamento.

As escolas devem tornar-se incubadoras de gestores ambientais com consciência social. Os currículos escolares precisam incorporar, com seriedade e compromisso, a questão ambiental como uma dimensão profundamente humana e social. Precisamos formar estudantes que não apenas saibam separar o lixo, mas que compreendam as histórias humanas por trás de cada resíduo descartado, que entendam que a sustentabilidade só será real se incluir os mais pobres no seu desenho.

A formação cidadã deve alargar-se ao ensino superior, onde a engenharia ambiental, a sociologia, a comunicação, a psicologia e outras áreas devem dialogar entre si para produzir soluções interdisciplinares e inovadoras. É preciso romper com o paradigma de uma ecologia elitista e promover uma ecologia da solidariedade.

Os municípios, por sua vez, precisam assumir a responsabilidade de gerir o lixo como se estivessem a cuidar de vidas, porque é disso que se trata e é isso que se espera dos dirigentes. Não basta colocar contentores. É necessário planear a localização, segmentar os resíduos, formar os trabalhadores de limpeza urbana, proteger os utentes e oferecer alternativas seguras para quem, infelizmente, depende do lixo para sobreviver.

A gestão de resíduos sólidos em Moçambique precisa urgentemente de uma abordagem humanizada. É preciso integrar as realidades sociais ao discurso ambiental. É preciso olhar para os resíduos como parte de uma cadeia complexa de relações socioeconómicas. Não se trata apenas de preservar o ambiente. Trata-se de preservar vidas.

Este cartão amarelo é um aviso. Um apelo. Um grito. Podemos e devemos fazer melhor. Pela vida, pela dignidade, pela empatia. Porque o desenvolvimento, quando desatento à pobreza, tende a produzir mais miséria. E nossa missão, enquanto sociedade, é proteger os mais vulneráveis ou, no mínimo, não tornar ainda mais miserável a sua existência.

É tempo de trazer esses saberes para o centro da acção pública e da consciência cidadã. É tempo de agir com empatia, planeamento e visão. O equilíbrio socioecológico depende disso.

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