Cartão amarelo à cooperação desumana entre Moçambique e África do Sul

A Cooperação bilateral entre Moçambique e a África do Sul sempre foi apresentada como um símbolo de integração regional, de partilha histórica e de complementaridade económica. Porém, por trás do discurso oficial, esconde-se uma realidade crua, desigual e profundamente desumana, que exige um cartão amarelo firme e inequívoco. Os números não mentem: só nos últimos vinte anos, a Sasol exportou para a África do Sul cerca de 2,6 bilhões de gigajoules de gás proveniente de Pande e Temane, enquanto apenas 352 milhões de gigajoules ficaram em Moçambique. Em 2024, mais de 922 milhões de dólares em combustíveis e derivados foram exportados para o mercado sul-africano, alimentando indústrias, casas e sistemas de transporte daquele país. Paradoxalmente, o povo moçambicano continua a carregar botijas de gás de um lado para o outro, pagando caro por um recurso que nasce nos seus próprios solos, enquanto do outro lado da fronteira o mesmo gás corre nas canalizações das casas, impulsionado por um modelo de Cooperação que privilegia lucros corporativos e interesses governamentais, mas ignora a dignidade humana.

E enquanto o gás atravessa fronteiras sem impedimentos, o moçambicano comum enfrenta um cenário oposto: barreiras, morosidade deliberada, humilhações e violência. As deportações são um exemplo gritante. Só no primeiro semestre de 2025, a África do Sul deportou 5.070 moçambicanos, um aumento de 18% em relação ao ano anterior. Milhares de pessoas tratadas como carga indesejada, amontoadas, devolvidas sem dignidade, muitas vezes depois de anos contribuindo com trabalho árduo para a economia daquele país. E não faltam relatos de violência, abuso e condições degradantes durante estes processos. Mais grave ainda são os episódios de xenofobia, repetidos como um ciclo interminável. Em várias ondas de violência, dezenas de moçambicanos perderam a vida, negócios foram saqueados, casas queimadas, famílias destruídas. Esses ataques, com longas raízes históricas, são reflexo de desigualdades internas profundas que acabam por transformar o estrangeiro, sobretudo o africano imigrante, no bode expiatório perfeito. Ao mesmo tempo, os governos reúnem-se com tapetes vermelhos, discursos polidos e declarações de amizade, mas nunca houve uma cimeira séria dedicada exclusivamente à protecção dos cidadãos moçambicanos na África do Sul. Não há um plano conjunto para defender a integridade física, social e psicológica de quem procura melhores condições naquele país vizinho. Não há estrutura real para garantir segurança, legalização acessível, protecção laboral, apoio jurídico ou integração comunitária. Nada. A cooperação política e económica continua robusta, enquanto a cooperação humanitária permanece praticamente inexistente.

E por que continuam a ir tantos moçambicanos? Porque no seu próprio país as oportunidades são escassas, os salários insuficientes e o desenvolvimento desigual. Milhares buscam na África do Sul uma forma de sustentar famílias, pagar escolas, comprar alimentos. Fazem de tudo: trabalham nas minas, nas quintas, nas construções, na segurança privada, nas tarefas que muitos cidadãos sul-africanos desprezam. Ajudam a erguer prédios, fábricas, estradas. Contribuem para a economia sul-africana tanto quanto qualquer trabalhador local, mas são tratados como estrangeiros descartáveis. Essa contradição brutal mina qualquer narrativa de integração regional ou solidariedade histórica. E quando regressam, muitos voltam traumatizados, despojados de bens, sem poupança, com histórias de abusos, agressões ou perdas irreparáveis. Há famílias que perderam entes queridos sem nunca receber explicações; há bens saqueados; há casas invadidas; há vidas desfeitas por ataques xenófobos diante da complacência das autoridades locais. Tudo isso sob o silêncio ensurdecedor de quem deveria ser o guardião da dignidade do povo moçambicano: o próprio Estado.

Nas fronteiras, o cenário é igualmente humilhante. Moçambicanos são obrigados a madrugar, passar horas intermináveis em filas intermináveis, dormir ao relento, enfrentar atrasos deliberados e intervenções arbitrárias. A travessia, que deveria ser uma formalidade administrativa, converteu-se num ritual de desgaste físico e psicológico. Um verdadeiro teatro de demonstração de força, em que o migrante é lembrado de que não é bem-vindo, mesmo que o seu trabalho alimente empresas e cidades inteiras do outro lado da fronteira. E enquanto isso acontece, camiões carregados de minério atravessam Moçambique todos os dias, poluindo estradas e matando pessoas em acidentes que raramente recebem investigação ou responsabilização. O crómio é transportado livremente; já o cidadão, esse sofre entraves e humilhações. E não faltam casos de racismo explícito praticado por turistas sul-africanos, especialmente boers, que frequentam praias moçambicanas tratando população local com desprezo e superioridade, muitas vezes sob o olhar impávido de autoridades mais preocupadas com dividendos do turismo do que com a dignidade do seu próprio povo.

Fazendo um balanço honesto, é impossível não questionar o modelo de cooperação vigente. De que vale a integração económica quando a vida humana vale menos que um contrato energético? Que tipo de parceria é essa em que as mercadorias circulam com mais liberdade que seres humanos? Quem se beneficia deste arranjo? Certamente não o povo moçambicano. A dependência económica reforça-se, a injustiça social aprofunda-se e o discurso político esconde esta contradição atrás de sorrisos e banjas diplomáticas. Os acordos energéticos são celebrados, as dívidas e lucros repartem-se, enquanto famílias inteiras são destruídas pela xenofobia, pela insegurança, pela falta de oportunidades e pela negligência institucional. E quando alguém tenta questionar este modelo, surge o argumento de que “a economia precisa”, como se a economia fosse um ser sagrado acima da vida humana. Como se o capital tivesse mais valor que a pessoa.

A verdade é dura: esta cooperação tornou-se um mecanismo de exploração moderna, mascarado de integração regional. Um sistema que exporta gás barato e importa violência, deportações, humilhação e desprezo. E isso, num século que se pretende de direitos humanos, dignidade e desenvolvimento sustentável, é profundamente vergonhoso. Por isso, este cartão amarelo não é simbólico, mas sim um aviso grave, um alerta contra a normalização da injustiça, da desigualdade e da indiferença entre povos irmãos separados por uma linha fronteiriça ténue, onde a solidariedade sempre foi o pano de fundo. Um aviso aos governos dos dois países, às empresas que lucram, às instituições que se calam, aos guardiões da história que se escondem. Porque o povo não pode continuar a ser o elo mais fraco de uma cadeia que movimenta bilhões. A cooperação só tem sentido quando coloca as pessoas no centro. Quando protege, integra, dignifica e garante oportunidades. Tudo o resto é exploração travestida de diplomacia. E quem conhece a história dos nossos povos sabe que fomos feitos para resistir, não para aceitar humilhação como destino. É tempo de repensar tudo. É tempo de exigir uma cooperação que, finalmente, respeite quem mais tem dado, o moçambicano comum.

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