
Oito anos depois da primeira bala disparada em Mocímboa da Praia, a guerra em Cabo Delgado permanece como a ferida mais aberta da jovem democracia moçambicana. O que começou, em 2017, como uma série de ataques misteriosos de jovens armados contra esquadras da polícia e aldeias isoladas, transformou-se numa insurgência prolongada que já devastou comunidades inteiras, matou milhares e deslocou quase um milhão de pessoas. Mas a pergunta que paira sobre o país é simples e dolorosa: quem realmente lucra com esta guerra? O governo insiste em enquadrar o conflito como parte do terrorismo islâmico global, uma célula do chamado Estado Islâmico em África. Esta versão é conveniente, porque transfere a responsabilidade para fora e facilita a captação de apoio internacional. Mas, ao longo destes oito anos, a realidade que se desenha no terreno parece mais complexa, mais moçambicana e, sobretudo, mais sombria.
Logo nos primeiros ataques em Mocímboa da Praia, a população local levantou a voz: não eram estrangeiros barbudos que invadiram as aldeias, eram jovens da própria província, muitos deles conhecidos nas comunidades. Eram filhos de camponeses, ex-estudantes do ensino corânico e jovens sem perspectivas de emprego. A sua revolta tinha menos de ideologia islâmica e mais de frustração acumulada. Entretanto, o discurso oficial percorreu outra estrada. Desde Maputo, a insurgência foi descrita como fruto da infiltração de forças externas, terroristas vindos da Tanzânia, da Somália, até do Médio Oriente. A narrativa teve eco em países ocidentais bem como nos orientais, ambos ávidos em associar o conflito ao combate global ao terrorismo. Mas a contradição permanece: se é apenas terrorismo externo, por que razão tantos jovens locais aderiram às fileiras insurgentes? Por que motivo aldeias inteiras, já marginalizadas pelo Estado, viram na rebelião uma oportunidade de vingança contra elites distantes que lhes roubaram a terra e a dignidade?
A versão popular, que ecoa nas feiras, nos campos de deslocados e até em círculos académicos, é diferente: o terror é, em grande parte, um produto interno, uma arma fabricada no silêncio dos gabinetes políticos para manter Cabo Delgado como propriedade privada de uma elite. A província é, paradoxalmente, uma das mais pobres e, ao mesmo tempo, uma das mais ricas de Moçambique. Do subsolo emergem rubis, grafite e pedras preciosas. No mar repousam as gigantescas reservas de gás natural liquefeito, estimadas em milhares de milhões de dólares. No entanto, a exploração destes recursos pouco beneficiou a população local. Pelo contrário, muitos perderam as suas terras para dar lugar a mega- projectos. Em Palma, em Afungi, em Montepuez, famílias inteiras foram reassentadas em condições precárias, recebendo casas frágeis, sem acesso a água potável ou terras férteis para cultivo.
“Antes eu plantava mandioca, milho, criava cabritos. Hoje vivo num bairro onde nem consigo fazer uma machamba. Disseram que seria melhor, mas ficámos sem nada”, lamenta um deslocado de Quitunda, repetindo o testemunho de centenas de outros. Enquanto isso, elites políticas e empresariais acumulavam fortunas através de concessões obscuras, contratos milionários e tráfico de recursos. O contrabando de rubis de Montepuez, muitas vezes controlado por redes ligadas a altos quadros da Frelimo, tornou-se símbolo desta apropriação clandestina. É neste contexto que muitos analistas vêem o conluio do poder. A insurgência, em vez de ser apenas uma ameaça, funciona como instrumento de gestão territorial: militariza-se a província, restringe-se o acesso, desloca-se a população e cria-se espaço livre para o capital estrangeiro operar sem entraves.
O ataque de março de 2021 à cidade de Palma marcou um ponto de viragem. O mundo acompanhou em direto, através de relatos de empresas estrangeiras e de organizações humanitárias, a tomada da cidade por insurgentes. Mas, quando os rebeldes se retiraram, o saque não parou. Foram as próprias forças de segurança moçambicanas que pilharam bancos, hotéis e casas comerciais. Esse episódio chocou a opinião pública e confirmou o diagnóstico de que a guerra, em Moçambique, também se tornou um negócio. Por um lado, insurgentes lucram com o saque, a pilhagem de aldeias, o controlo de rotas de tráfico de madeira, rubis e drogas. Por outro, militares e altos funcionários beneficiam da permanência da guerra, que justifica mais orçamentos, mais contratos de segurança e mais apoio internacional.
O conflito em Cabo Delgado não pode ser visto apenas pelas lentes nacionais. Há uma dimensão internacional decisiva. A União Europeia, sobretudo através da França, tornou-se um dos maiores patrocinadores da resposta de segurança. Paris tem razões claras: a gigante Total Energies, francesa, é líder do mega- projecto de gás em Afungi, avaliado em mais de 20 mil milhões de dólares. Assim, a ajuda europeia nunca foi neutra. O financiamento da presença militar ruandesa em Cabo Delgado é um exemplo flagrante. Oficiais ruandeses asseguram as zonas mais estratégicas, como Palma e Afungi, onde estão localizados os investimentos de gás, enquanto muitas aldeias periféricas continuam vulneráveis. A mensagem implícita é clara: proteger os investimentos tem prioridade sobre proteger vidas humanas. As relações económicas com o Ocidente parecem obedecer uma lógica que nos remete a desconfiar de uma nova forma de exploração e sobre isso, o Professor Joseph Hanlon no seu livro Moçambique Recolonizado através da Corrupção, sublinha que os novos colonizadores já não chegam com bandeiras nacionais, mas com contratos empresariais e financiamento multilateral.
Nos campos de deslocados em Metuge, Pemba e Ancuabe, a guerra tem rosto humano. Mulheres que fugiram com crianças ao colo, homens que perderam familiares, jovens que viram a escola interrompida. “Oito anos de guerra e ninguém sabe quando acaba”, desabafa um jovem deslocado. “Quando ouvimos tiros, corremos. Quando vemos soldados, também corremos. Já não sabemos em quem confiar.” Essa desconfiança generalizada é talvez o maior legado da insurgência. A população sente-se abandonada entre dois fogos: insurgentes que matam e raptam, e forças estatais que reprimem e saqueiam.
No oitavo ano da insurgência, os números falam por si: mais de seis mil mortos, centenas de milhares de deslocados internos, aldeias inteiras destruídas. Mas, para além da dimensão humanitária, há a crise de legitimidade. O Estado moçambicano, dominado por uma elite oligárquica, parece cada vez mais distante do povo. As fraudes eleitorais de 2023 e 2024, seguidas pela repressão violenta de manifestações, reforçam a sensação de que o mesmo modelo de Cabo Delgado se estende a todo o país: concentração de poder, repressão da juventude e apropriação dos recursos. Para muitos jovens, a guerra em Cabo Delgado é apenas o sintoma mais extremo de um país capturado. “Quem está em Maputo enriquece. Quem está em Cabo Delgado morre”, resume um académico local.
Oito anos depois, Cabo Delgado representa a derrocada sem precedentes de um projecto nacional que nasceu com a independência. A província mais rica do país é palco da maior tragédia humanitária da sua história recente. As narrativas continuam em disputa: terrorismo global, revolta juvenil, conspiração internacional. Mas a que mais ressoa é a da instrumentalização do terror pelo próprio poder, num jogo que envolve elites nacionais e parceiros externos. No fim, a guerra não é apenas contra insurgentes. É também uma guerra contra o povo moçambicano, um povo que continua a morrer, deslocado, esquecido, enquanto os rubis brilham nas vitrinas internacionais e o gás é exportado para aquecer casas na Europa.
Cabo Delgado não é apenas um conflito localizado. É o espelho de um país em que a corrupção se tornou sistema, em que a riqueza gera pobreza e em que a guerra serve de moeda de troca entre elites e corporações estrangeiras. A grande questão que permanece é: quanto mais sangue terá de ser derramado antes que se reconheça que a verdadeira insurgência nasce no interior do próprio Estado?

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