As Cidades Que Incham: o drama do êxodo rural e a pobreza que se desloca em Moçambique

Nas madrugadas que antecedem os autocarros lotados rumo à capital, há rostos que se perdem no anonimato de uma esperança. São jovens, mulheres e homens que abandonam os campos do Norte, fugindo da terra seca, da falta de escolas, de hospitais e de oportunidades. Carregam no olhar o reflexo de um país desigual, onde as províncias de origem se esvaziam enquanto a capital e as grandes cidades se tornam depósitos humanos de sonhos adiados. O êxodo rural, que há décadas alimenta as estatísticas migratórias internas, é hoje o retrato mais cru da pobreza estrutural de Moçambique.

Maputo, Matola, Beira e Nampula crescem em ritmo desordenado, transformando-se em mosaicos de contrastes: condomínios fechados ao lado de bairros informais, e torres reluzentes cercadas por mercados improvisados onde o suor é a única moeda. Os novos assentamentos urbanos nascem sem água canalizada, sem saneamento, sem ruas nem escolas mas cheios de gente que acredita que “na cidade há vida melhor”. O sonho, contudo, morre depressa.

O movimento migratório interno é um sintoma de algo mais profundo: o fracasso do Estado em criar condições mínimas de fixação nas zonas rurais. As estradas que não chegam, os serviços públicos que se ausentam e a ausência de políticas agrícolas sustentáveis empurram a população para as cidades. O campo, antes berço da vida e da produção, passou a ser um espaço de exclusão. O governo, conhecedor do fenómeno, assiste em silêncio, como se a migração fosse uma escolha e não um grito de socorro colectivo.

Em Cabo Delgado, Niassa e Nampula, jovens abandonam a enxada e partem em busca do improvável. Em Maputo, Matola e Boane, tornam-se mototaxistas, vendedores ambulantes, carregadores de mercado, seguranças informais. É o ciclo da precariedade: o país não cria empregos formais, e o desemprego juvenil se disfarça sob a ilusão do “autoemprego”. Nas ruas, multiplicam-se bancas improvisadas e ofícios de sobrevivência que garantem o pão, mas não o futuro.

Os bairros periféricos das grandes cidades tornam-se o novo campo de batalha da pobreza. Crescem sem planeamento, sem estrutura, sem dignidade. Nascem como resposta ao abandono do interior e à falta de políticas habitacionais sérias. Assim, Maputo se alonga para os distritos limítrofes, a Matola se transforma num refúgio de migrantes do Centro e do Norte, e Nampula se incha com deslocados da pobreza e da guerra.

Os assentamentos urbanos informais são hoje laboratórios da desigualdade. Lá, a ausência do Estado é substituída pela criatividade popular. Constrói-se com o que há: zinco, madeira, tijolos de barro. Vive-se sem água potável, e quando chove, a lama mistura-se à resignação. As crianças crescem com a cidade, mas sem cidadania. A urbanização avança, mas o desenvolvimento recua.

A pirâmide etária moçambicana é larga na base, sinal de uma população jovem e, teoricamente, cheia de potencial produtivo. Mas como realizar esse potencial num país que não garante as necessidades básicas? À luz dos preceitos de Abraham Maslow, Moçambique continua preso ao primeiro degrau: o da sobrevivência. Faltam comida, abrigo, segurança e saúde. Quando as necessidades fisiológicas não são supridas, a motivação para o progresso desaparece.

O resultado é um exército de jovens sem rumo, vivendo no limbo entre a esperança e a frustração. São milhões que não estudam nem trabalham, e que se tornam vulneráveis à criminalidade, ao consumo de drogas ou à exploração política. Essa juventude desassistida é o espelho de uma nação que ainda não aprendeu a planejar o futuro.

Um dos problemas mais graves é a manipulação  intencional ou não dos dados populacionais. Por razões políticas, a verdadeira dimensão do êxodo rural e do crescimento urbano é frequentemente deturpada. As autoridades preferem relatórios que confortam em vez de números que inquietam. Assim, as políticas públicas são construídas sobre areia movediça: não se conhece com precisão quantos jovens vivem nas cidades, quantos estão desempregados, quantos sobrevivem em condições indignas.

Essa cegueira estatística impede o governo de agir com realismo. Em vez de planeamento, há improviso. Em vez de políticas estruturais, há paliativos. E o país segue fingindo não ver o que salta aos olhos: que o crescimento urbano desordenado e a pobreza que migra dos campos para as cidades são bombas-relógio sociais prestes a explodir.

O êxodo rural não resolve a pobreza, apenas a transfere. O camponês que deixa a machamba torna-se um morador de barraca; o agricultor vira vendedor de rua. Troca-se a fome do campo pela fome urbana, o isolamento pela marginalização. E o Estado, em vez de criar oportunidades, multiplica promessas.

A pobreza em Moçambique tem agora um novo rosto: o do jovem urbano que sobrevive de biscates, o da mulher que vende frutas ao sol, o da criança que não vai à escola porque precisa ajudar em casa. São vítimas de um sistema que não oferece mobilidade social. São os filhos do êxodo e da negligência.

Enquanto os autocarros continuam a chegar cheios à capital, a nação parece caminhar em círculos. As políticas de descentralização, o desenvolvimento rural e o emprego jovem permanecem no papel. O campo continua a esvaziar-se, e as cidades continuam a inchar. Moçambique é hoje um país em movimento, mas sem direcção.

A solução exigiria coragem política e visão de Estado: investir nas zonas rurais, revitalizar a agricultura, criar empregos locais, fortalecer as pequenas economias comunitárias e oferecer condições dignas para que ninguém precise migrar para sobreviver. Mas enquanto as decisões continuarem reféns do cálculo político e das estatísticas manipuladas, a miséria continuará seu trajecto previsível: do campo para a cidade, e da cidade para o desespero

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