
Antes de serem largados ao abandono na fronteira de Ressano Garcia, dezenas de moçambicanos passam pela experiência amarga de cumprir penas de prisão na vizinha África do Sul. Não se trata de crimes violentos, como alguns podem imaginar, mas de uma realidade mais cruel: a prisão por falta de documentos. Muitos são detidos simplesmente porque não têm passaporte ou porque os seus vistos de curta duração, que dificilmente acompanham a dura busca por oportunidades de trabalho, acabam por expirar rapidamente. Jovens que atravessam a fronteira com o sonho de sustentar as suas famílias ou de juntar algum dinheiro para melhorar de vida, acabam a pagar caro por um sistema migratório que os transforma em infratores.
A pena é quase sempre a mesma: dois meses atrás das grades. Dois meses de humilhação, convivendo com criminosos de verdade, tratados como marginais quando a sua maior “falha” foi tentar sobreviver. A liberdade, quando chega, não vem acompanhada de redenção. Pelo contrário, abre caminho para uma segunda etapa de sofrimento, desta vez no seu próprio país. Depois de cumprirem a sentença, os moçambicanos são transportados em autocarros até à fronteira e largados em Ressano Garcia, sem aviso, sem acolhimento, sem sequer uma palavra de orientação.
Na semana passada, cinquenta e dois cidadãos foram abandonados dessa forma. Homens, mulheres e até crianças. Todos eles passaram pela experiência degradante de serem deixados na terra de ninguém, entre a fronteira sul-africana e a moçambicana, como se fossem fardos descartáveis. Do lado sul-africano, a escolta termina no limite fronteiriço. Do lado moçambicano, não há protocolo, nem receção oficial, nem sequer uma sombra de compaixão institucional. O resultado é que cada um deles tem de se virar como pode para sobreviver.
A cena repete-se há meses e já não choca como deveria. A comunidade habituou-se a ver rostos cansados, roupas rasgadas, crianças agarradas ao colo das mães, todos em busca de um pedaço de pão ou de um canto para dormir. Mas se a indiferença do Estado é gritante, a solidariedade popular tem sido o fio de esperança. São as mamanas, mulheres que vendem refeições no mercado, que dividem as sobras com os recém-chegados. São os vizinhos que compram roupas usadas do branco morto para evitar que os repatriados caminhem quase nus. São os pequenos empreiteiros que, mesmo desconfiados, dão biscates em obras de construção para que esses homens possam juntar algum dinheiro e regressar às suas províncias.
O contraste com o passado é chocante. Os mais velhos lembram-se de como funcionava a recepção em tempos anteriores. O secretário do bairro, Paulo Jamisse, que acompanha de perto a situação, recorda com nostalgia: “Havia um centro aqui onde os repatriados recebiam refeições e tinham onde dormir, enquanto aguardavam pelo comboio para Maputo. Existia um grande pavilhão e até uma cozinha. O transporte era organizado e gratuito, com uma carruagem específica só para eles. Mais tarde, chegou a existir o Centro de Maguaza, em Boane, que servia como ponto de acolhimento. Era pouco, mas havia dignidade.”
Esse passado, embora distante, mostra que não se trata de uma impossibilidade, mas sim de uma escolha política. Hoje, em vez de centros de acolhimento, há apenas esquecimento. Em vez de comboios organizados, há homens e mulheres a mendigar boleias para regressar a Gaza, Inhambane ou Manica. Em vez de refeições mínimas, há apenas o gesto solidário das vendedoras do mercado.
A experiência de Juvêncio Nelson, de 27 anos, espelha o drama colectivo. Natural de Gaza, Juvêncio estudou até à nona classe antes de tentar a sorte na África do Sul. Seis meses depois de atravessar a fronteira, foi apanhado numa rusga por falta de identificação. Passou dois meses preso. Quando regressou, no dia 14 de Agosto, encontrou apenas o frio do papelão ao relento. “Só não passo fome graças às senhoras que nos dão comida quando sobra”, conta com um sorriso amargo. O seu objectivo agora é juntar dinheiro suficiente em biscates para regressar à sua terra natal, Macia.
Outro caso é o de Paulo Uamba, de 29 anos, natural de Inhambane. Estava na África do Sul há quase dois anos quando foi deportado, também depois de cumprir dois meses de cadeia. “Agora trabalho nas obras quando aparece serviço. Espero receber na próxima semana para pagar transporte e voltar para casa”, diz. Apesar da adversidade, faz questão de agradecer: “Sem as mamanas, já teria passado muito mal. São elas que nos dão de comer e até roupa usada.”
Esses testemunhos mostram que a luta pela sobrevivência não termina com a deportação. Pelo contrário, começa ali. Muitos repatriados tornam-se alvos de roubos assim que chegam. Os poucos bens pessoais que carregam são facilmente subtraídos. Outros, sem vestuário adequado, veem-se obrigados a depender da generosidade dos vizinhos. Crianças circulam pelo mercado, famintas e vulneráveis, sem qualquer assistência oficial.
A polícia local admite a presença crescente desses grupos, mas ressalta que eles não têm causado distúrbios. Limitam-se a procurar biscates ou a aceitar a comida oferecida. A verdadeira preocupação, segundo os próprios moradores, é o futuro. “Hoje vivem nas ruas, amanhã podem cair na criminalidade. É uma situação que precisa de atenção”, comenta um oficial.
Apesar de tudo, o que se vê em Ressano Garcia é também uma lição de humanidade. A solidariedade popular mostra que, mesmo em contextos de pobreza, o povo ainda encontra espaço para cuidar uns dos outros. É essa rede invisível de partilha que tem evitado uma tragédia maior. O povo, que já pouco tem, divide o pouco que sobra. Já o Estado, que deveria ter mais meios, oferece apenas o silêncio.
Para quem observa de fora, Ressano Garcia tornou-se símbolo do fracasso da política migratória moçambicana. Os repatriados são deixados como peso morto numa terra que deveria ser o seu lar. A indiferença oficial contrasta com a generosidade dos mais pobres. O passado mostra que houve tempos em que o Estado se importava minimamente, mas o presente grita abandono.
E no entanto, mesmo neste cenário de esquecimento, a fronteira continua a revelar uma verdade profunda: se a dignidade foi perdida, a humanidade ainda resiste. Está nas mãos das mamanas que dividem a comida, nos vizinhos que oferecem roupa usada, nos empreiteiros que dão biscates. É uma humanidade silenciosa, mas poderosa, que resiste ao abandono oficial e prova que os laços de solidariedade entre moçambicanos ainda sobrevivem.
Ressano Garcia é hoje uma ferida aberta. Uma terra de passagem que se transformou em destino provisório para os que regressam sem nada. Um lugar onde o Estado falhou, mas onde o povo continua a mostrar que, apesar da pobreza, não perdeu a capacidade de partilhar. Uma terra onde a dignidade dos repatriados foi sacrificada, mas onde a solidariedade popular insiste em manter viva a chama da esperança.

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