Figura do Ano 2025

A história de Simão Adriano Nhancule é um testemunho vivo da força da cultura moçambicana. Recentemente distinguido como o Melhor Professor de 2025 — um reconhecimento que já havia recebido em 2011, a sua trajectória começa longe dos holofotes, na aldeia de Macaringuene, no distrito de Zavala, província de Inhambane. Foi de lá que partiu, um dia, “de pés descalços” para Maputo, carregando na bagagem não só a esperança de uma vida melhor, mas também o dom herdado dos seus.

Hoje, professor, instrumentista, bailarino e compositor, Nhancule é um arquivo vivo da tradição. Com passagem pela Casa da Cultura de Xipamanine, pela Casa da Cultura do Alto Maé, pela prestigiada Companhia Nacional de Canto e Dança (CNCD) e actualmente lecionando na Escola Nacional de Música, a sua vida é dedicada à preservação e ao ensino. A sua arte ultrapassou fronteiras: numa das últimas edições da Expo no Japão, uma música da sua autoria, originalmente composta para Mbira, foi adaptada e executada por um robô no pavilhão de Moçambique, simbolizando um diálogo perfeito entre a tradição ancestral e a inovação do futuro.

Nascido numa família de artistas, o primeiro contacto com a música deu-se através do pai, tocador do grupo de timbila “Tamagueiro”. “Ele não tinha instrumento próprio”, recorda Nhancule, “então improvisou uma Mbila com madeiras de mueço e teclas apoiadas no caule de uma bananeira. Nós chamávamos de macocoma. Quando ele saía, nós, os miúdos, ficávamos a tentar imitar.” Essa brincadeira infantil foi a semente.

Ainda em Macaringuene, tornou-se líder do grupo de Ngalanga, participando em festivais e ganhando prémios. A sua família materna também é referência: é sobrinho do célebre Mestre Venâncio, figura incontornável da música chopi.

A migração para Maputo, no início dos anos 90, foi motivada pela busca de oportunidades. “Eu e um outro menino saímos da aldeia a procura de melhores condições”, conta. O início na capital foi difícil, dedicando-se à venda de roupa usada no mercado de Xipamanine. No entanto, o chamado da cultura era mais forte. “Um dia, ouvi um som de batuque. Era Ngalanga!”, recorda com entusiasmo. Seguiu o som e apresentou-se ao grupo do Conselho Executivo. Ao demonstrar o seu talento, foi imediatamente aceite.

A viragem decisiva aconteceu durante uma actuação no Instituto Nacional de Meteorologia, onde chamou a atenção do então diretor da Casa da Cultura do Alto Maé, Fernando Rafael. “Ele disse: ‘Estou à procura de um marimbeiro jovem’”. No dia seguinte, Nhancule estava na Casa da Cultura, integrando o seu grupo. Teve então de fazer uma escolha: “Larguei a venda de roupa e dediquei-me definitivamente à arte”. Começou a receber um salário, a viajar para o estrangeiro e a construir uma carreira.

Em 2000, deu outro salto qualitativo ao ingressar como funcionário na Companhia Nacional de Canto e Dança (CNCD). “Foi lá que cresci artisticamente”, afirma. A sua energia e conhecimento dos ritmos tradicionais revitalizaram o grupo. “Quando cheguei, quando parávamos de dançar ficava tudo mudo. Nós transformámos as actuações em verdadeiros concertos de música tradicional”, orgulha-se.

Em 2011, uma transferência inesperada para a Escola Nacional de Música foi inicialmente recebida com desânimo. “Achei que era brincadeira do dia da mentira. Senti-me afastado do ponto mais alto”, confessa. No entanto, esse tornou-se o palco da sua maior missão: formar novas gerações.

“Ser professor é um desafio constante”, explica. “Cada criança tem uma dificuldade. Planificamos uma vez, mas temos de adaptar. As crianças aprendem e o professor também cresce.” A sua experiencia com a Mbila facilitou o ensino da marimba, enquanto se dedicou a dominar e a ensinar a mbira nyunga nyunga, instrumento de origem moçambicana (da etnia Nyungue de Tete) muitas vezes erroneamente associado apenas ao Zimbabwe.

Para Nhancule, a realização é completa. “Considero-me o porta-voz da minha aldeia”, declara. “Estou a resgatar melodias que estavam só na memória das pessoas. Uso a língua local, falo do dia a dia do meu povo. Olho para o menino que cartava água a quilómetros de distância, que foi pescador, e vejo-o agora a partilhar palco com grandes nomes, a viajar pelo mundo, a ensinar. Sinto-me realizado.”

Questionado sobre o papel da digitalização na preservação cultural, Nhancule mostra uma visão ponderada. “É importante, mas é uma faca de dois gumes”, analisa. “Facilita o registo e a divulgação, mas também pode gerar preguiça. Hoje, com um programa, faz-se uma música sem se tocar um instrumento. O risco é perdermos a essência, a técnica.” O seu conselho é claro: “O sistema digital é bem-vindo, mas temos de saber usá-lo, não para substituir, mas para aperfeiçoar e documentar.”

A sua trajectória não foi isenta de momentos dolorosos. Em 2019, enfrentou a perda da esposa, “um momento complicado” que superou com resiliência. No entanto, a alegria e o reconhecimento têm marcado o seu percurso recente. O título de Melhor Professor em 2025 coroa esta fase.

E a experiência na Expo do Japão permanece como um marco simbólico. “A organização pediu uma das minhas músicas para ser transformada de Mbira para Mbila e tocada por um robô. Foi um sucesso. Recebi um bom montante e fiquei de boca aberta. Afinal, a cultura é remunerada”, relata, com um sorriso de satisfação.

A sua mensagem final é de esperança e perseverança para os artistas: “Não desistam. Quando chegar a vez, será bem pago. O que é vosso está guardado.”

Simão Adriano Nhancule é mais do que um professor ou um músico. É uma ponte entre gerações, entre a aldeia e o mundo, entre o toque ancestral na madeira da Mbila e a precisão digital de um robô no Japão. Na sua história, a cultura moçambicana não só sobrevive, mas vibra, ensina e encanta, provando que as raízes mais profundas são as que melhor permitem voar.

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