
Paulo Vilanculo"
A noção implícita da “Assembleia dos primos” deve ser compreendida no quadro da hegemonia partidária que estrutura o funcionamento do órgão legislativo. Tal hegemonia condiciona o pluralismo efetivo, reduz a conflictualidade democrática e limita o exercício da fiscalização política. A disciplina partidária tende a sobrepor-se à autonomia dos representantes eleitos, enfraquecendo o papel do parlamento como instância de controlo do poder executivo e de produção normativa orientada para o interesse público. Como se afirma que o povo esta numa democracia participativa ou representativa se nao escolha livre, clara nem transparente, a constituicao dos ditos eleitos nao vai por via do surfragio mas sim por listas de conveniencias partidarias?
O discurso de encerramento, marcado por solenidade e formalismo, reproduziu uma narrativa de estabilidade institucional e de normalidade democrática que contrasta, de forma significativa, com as dinâmicas sociais, económicas e políticas que atravessam o país. A II sessão encerra sem um balanço rigoroso da eficácia das leis aprovadas, da capacidade fiscalizadora da Assembleia em relação ao Executivo ou do impacto real das resoluções parlamentares no quotidiano dos cidadãos. A ausência de canais estruturados de participação da sociedade civil, de organizações comunitárias, profissionais e académicas, reforça o caráter autocentrado da Assembleia e amplia a distância entre o Estado e os cidadãos. A ausência de autocrítica institucional reforça a perceção de um parlamento autocentrado, mais preocupado com a preservação da sua imagem simbólica do que com a redefinição do seu papel num contexto de crise multidimensional.
Observou-se uma predominância da retórica institucional em detrimento de uma abordagem orientada para resultados mensuráveis. Institucionalmente, pode-se afirmar que a Assembleia é “do povo” apenas em sentido formal, isto é, porque os seus membros foram eleitos por sufrágio universal. A contradição central reside no facto de o povo ser plural, enquanto o parlamento é partidarizado. Enquanto essa partidarização não for compensada por mecanismos efetivos de inclusão social, participação cidadã e autonomia representativa dos deputados, a Assembleia continuará a falar em nome do povo, mas não a partir do povo.
A afirmação de “Assembleia do Povo” composta exclusivamente por assentos partidários encerra uma contradição estrutural entre representação formal e representação substantiva. A designação “Assembleia do Povo” assume, neste contexto, um carácter mais simbólico do que sociopolítico, funcionando como recurso discursivo de legitimação de uma instituição estruturalmente partidária. Numa assembleia exclusivamente partidária, o vínculo do representante tende a deslocar-se do eleitor para o partido, uma vez que a sua permanência política depende mais da fidelidade à hierarquia partidária do que da defesa autónoma dos interesses sociais que afirma representar. Uma assembleia composta exclusivamente por assentos partidários pode ser juridicamente legítima, mas carece de legitimidade substantiva para se afirmar como “Assembleia do Povo”, na medida em que reduz a pluralidade social à lógica interna dos partidos políticos. Este fenómeno reduz a função deliberativa do parlamento e transforma-o num espaço de ratificação de decisões previamente definidas no interior dos partidos.
Os partidos políticos são, por definição, organizações parciais, orientadas por programas específicos e por lógicas internas de poder, disciplina e sobrevivência política. Os partidos políticos são organizações parciais, que expressam interesses, visões e projetos específicos e não de segmentos da sociedade. Esta realidade empírica permite afirmar que a Assembleia funciona mais como um espaço de reprodução do poder partidário do que como arena de expressão da soberania popular. A invocação constante do “povo” nos discursos oficiais não é acompanhada por políticas que traduzam materialmente essa representação.
O conceito de povo, na teoria política, remete para uma totalidade social plural, heterogénea e dinâmica, composta por diferentes grupos sociais, interesses económicos, identidades culturais e experiências históricas. A referência reiterada ao “povo moçambicano” surge como elemento legitimador do discurso político, mas não é acompanhada por uma avaliação crítica dos efeitos práticos da atividade legislativa na mitigação dos principais problemas estruturais do país, tais como o desemprego juvenil, o empobrecimento progressivo das famílias, a fragilidade dos serviços públicos essenciais e a persistente desigualdade regional.
A confusão deliberada entre estas duas categorias constitui um deslizamento semântico frequentemente usado para reforçar a legitimidade simbólica das instituições. A superação desta contradição exigiria a reconfiguração do papel do parlamento, com maior autonomia dos representantes, fortalecimento da fiscalização política e incorporação efetiva de mecanismos de participação dos cidadãos, capazes de aproximar a representação formal da legitimidade substantiva. Em termos teóricos da teoria democrática, autores como Hannah Arendt e Pierre Rosanvallon alertam que a representação política não elimina a pluralidade social, devendo antes reconhecê-la. Quando o parlamento se fecha num circuito exclusivamente partidário, essa pluralidade é reduzida a maiorias aritméticas, e não a vozes sociais reais.
A representação pressupõe a possibilidade de o eleitor identificar, avaliar e escolher os seus representantes, estabelecendo com eles um vínculo político direto. Quando a eleição se dá exclusivamente por listas fechadas, elaboradas sem participação democrática interna e sem mecanismos de responsabilização pública, o eleitor não escolhe propriamente representantes, mas ratifica opções partidárias que lhe são apresentadas como únicas ou inevitáveis. O voto deixa, assim, de ser uma expressão de vontade política consciente e transforma-se num ato de adesão forçada a arranjos institucionais opacos.A representação do povo devia estar inteiramente mediada por estas estruturas, o resultado não é a expressão direta da vontade popular, mas a sua filtragem por interesses partidários.
A afirmação de que o povo exerce soberania numa democracia representativa torna-se conceptualmente problemática quando o processo de escolha dos representantes não ocorre de forma livre, clara e transparente, mas é mediado por listas partidárias definidas segundo critérios internos de conveniência política. Deste modo, a designação “Assembleia do Povo” assume um caráter predominantemente simbólico e retórico. Esta dinâmica enfraquece o princípio da soberania popular, uma vez que os eleitos tendem a responder prioritariamente aos partidos que controlam a sua inclusão ou exclusão das listas eleitorais. O mandato representativo passa a ser, na prática, um mandato condicionado, subordinado à lógica da fidelidade partidária e não à responsabilidade perante os cidadãos. A autonomia do representante é substituída pela disciplina política, comprometendo a função deliberativa e fiscalizadora do parlamento.
A ausência de transparência na constituição das listas partidárias mina a legitimidade substantiva do processo eleitoral. Sem critérios públicos, democráticos e verificáveis de seleção dos candidatos, a igualdade de oportunidades políticas é seriamente comprometida. O acesso aos cargos eletivos deixa de depender da confiança dos eleitores e passa a ser determinado por redes internas de poder, clientelismo e alinhamento estratégico, o que aprofunda a distância entre representantes e representados. Nestas condições, a democracia representativa subsiste sobretudo como formalidade institucional, sustentada por procedimentos legais, mas desprovida de conteúdo democrático efetivo.
A retórica da participação popular oculta, assim, um défice democrático estrutural, no qual a representação política se converte num exercício de reprodução do poder partidário. O povo é convocado a votar, mas não a escolher; participa no processo, mas não controla os seus resultados; legitima o sistema, mas não o dirige. Esta lacuna evidencia uma tendência recorrente de priorização do cumprimento formal do calendário parlamentar, em detrimento de uma reflexão substantiva sobre a função representativa do parlamento enquanto espaço de mediação entre o Estado e a sociedade.
Conclui-se, assim, que o discurso de encerramento proferido por Talapa reafirma uma prática política caracterizada pela centralidade do discurso e pela fragilidade da ação transformadora. Falar em nome do povo, sem traduzir esse discurso em políticas públicas eficazes e socialmente perceptíveis, contribui para o aprofundamento da distância entre o Estado e a sociedade. A superação desta clivagem exige não apenas sessões solenes, mas uma reconfiguração profunda do papel do parlamento enquanto espaço de representação, fiscalização e produção de justiça social.
2025/12/3
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