
Paulo Vilanculo"
O Natal, enquanto símbolo de partilha, solidariedade e esperança, parece ser capturado por uma elite política que o interpreta como ritual de autopromoção e conforto institucional. Para o cidadão comum, sobretudo para a criança moçambicana, o Natal continua a ser uma promessa não cumprida, um ideal distante, observado apenas através das imagens do poder, transmitidas nos noticiários e discursos oficiais. O recente banquete natalício oferecido pela Presidência da República aos seus colegiários, sob o argumento simbólico de encerramento de um ano de mandato, expõe de forma cruel a distância entre o Moçambique oficial e o Moçambique real. A questão central não é a realização de um banquete em si, mas o silêncio ensurdecedor sobre o sofrimento infantil que atravessa o país. Onde estão, no mesmo espaço simbólico, as crianças de Cabo Delgado deslocadas pela guerra, as de Nampula vítimas da fome recorrente, ou as de Sofala e Gaza empurradas para a mendicidade urbana?
O paradoxo é gritante. Moçambique figura entre os países com maiores índices de desnutrição crónica infantil na região, com crianças condenadas desde cedo a limitações cognitivas, físicas e sociais irreversíveis. Num país onde a pobreza infantil assume contornos estruturais e persistentes, o banquete presidencial não é apenas um ato protocolar: é um símbolo político. Simboliza a normalização da abundância para poucos, em contraste com a escassez vivida por milhões. Fora da ponta vermelha, em muitas províncias, a fome não é sazonal, é permanente. Para milhares de crianças, sobretudo nas zonas rurais e periféricas urbanas, o Natal não se define por ceias, prendas ou mesas compostas, mas pela ausência de alimento, de cuidados básicos de saúde, de escola funcional e de proteção social efetiva. Ainda assim, o poder político escolhe celebrar-se a si mesmo, encerrando ciclos de governação com banquetes que seriam impensáveis para a maioria dos cidadãos que, em teoria, diz representar.
Um país signatário da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, a realização de um banquete natalício pela Presidência da República, destinado à elite governativa, constitui um ato politicamente chocante e juridicamente questionável quando confrontado com a realidade estrutural de fome, miséria e desnutrição que atinge milhões de crianças moçambicanas. Este gesto não pode ser relativizado como simples protocolo institucional, mas sim, trata-se de uma afronta ética e de um sinal explícito de incumprimento das obrigações internacionais assumidas pelo Estado moçambicano. À luz do direito internacional, a criança deveria ser prioridade absoluta em qualquer política pública. A Convenção é inequívoca que os Estados devem mobilizar “o máximo dos seus recursos disponíveis” para garantir os direitos das crianças.
O contraste entre a ostentação institucional e a miséria infantil é mais do que moralmente obsceno, é um indicador claro de violação sistemática dos direitos da criança. Enquanto o poder executivo celebra o encerramento de um ano de mandato com abundância alimentar, o próprio Estado falha em assegurar programas consistentes de alimentação escolar, segurança nutricional nas comunidades rurais e proteção social básica às crianças vulneráveis. Esta dissociação revela um padrão: o Estado alimenta-se antes de alimentar as suas crianças. Enquanto os salões do poder se iluminam com mesas fartas, iguarias escolhidas e discursos de celebração pelo fecho de um ano de governação, a maioria das crianças moçambicanas atravessa o Natal com o estômago vazio, os pés descalços e a incerteza como única prenda.
Este banquete não é neutro. Este desfasamento não é apenas moral, é político. Um Estado que celebra com abundância num contexto de fome estrutural revela prioridades distorcidas. O banquete do Presidente torna-se, assim, metáfora de um país profundamente desigual, onde a governação se encerra em círculos restritos, alheios à dor quotidiana da maioria. Para muitas crianças moçambicanas, o Natal que se almeja não é de luxo, mas de dignidade: uma refeição completa, água potável, um posto de saúde funcional, uma escola com professores motivados. Perante este cenário, impõe-se uma denúncia clara às instâncias internacionais de proteção da criança, incluindo agências das Nações Unidas, organizações de direitos humanos e parceiros de cooperação. O caso moçambicano exige mais do que assistência humanitária: exige escrutínio político, condicionamento ético da cooperação internacional e pressão diplomática para que os direitos da criança deixem de ser retórica e passem a ser prioridade real.
Um Estado que fecha o ano comemorando-se a si próprio, enquanto fecha os olhos à morte lenta de crianças condenadas desde o nascimento à pobreza estrutural. Comunica que o sofrimento infantil não constrange o exercício do poder; que a fome deixou de ser escândalo nacional; que a elite governante aprendeu a conviver confortavelmente com a miséria alheia. O banquete presidencial é, assim, um retrato fiel de um Estado que governa de costas para a sua base humana mais vulnerável. Enquanto o Estado comer bem e as crianças passarem fome, Moçambique continuará em incumprimento moral e jurídico perante o mundo. O banquete do Presidente transforma-se, assim, num símbolo internacionalmente relevante: não apenas do fosso entre governantes e governados, mas da indiferença institucional perante a violação diária do direito mais elementar, o direito da criança a viver com dignidade. O poder escolheu o menu, mas recusou-se a engolir a verdade.
O contraste é indecente. Enquanto o Presidente e seus pares levantam taças e partilham pratos caros, milhões de famílias moçambicanas sobrevivem de uma única refeição por dia mas enquanto ela existe. O Natal, que deveria simbolizar partilha, foi sequestrado pelo poder político e transformado num ritual de autopremiação. Para a criança moçambicana, o Natal não chega; quando muito, passa ao longe, embalado em discursos vazios sobre crescimento económico que nunca chega à sua panela. Neste contexto, os brindes com champanhe, as ceias fechadas e as confraternizações de elite cumprem uma função simbólica interna: reforçar coesão entre decisores, normalizar privilégios e autopremiar o próprio poder. A escolha do champanhe em vez de soro, da ceia em vez de paracetamol infantil, revela uma lógica clara em que a fome, a falta de medicamentos e a morte evitável se tornam rotina, sem deixar de escandalizado quem governa.
Enquanto o poder continuar a festejar sobre a fome, cada banquete será um insulto. E cada Natal oficial será uma lembrança cruel de que, em Moçambique, a mesa do Estado continua posta para poucos, enquanto o futuro das crianças é sistematicamente deixado em jejum. Enquanto o poder insistir em festejar-se sem olhar para baixo, o Natal continuará a ser um privilégio e não um direito simbólico coletivo. E cada banquete oficial, em tempos de fome infantil, será inevitavelmente lido como um retrato da indiferença institucional, uma fotografia que revela não apenas o que se come à mesa do poder, mas, sobretudo, o que falta nos pratos das crianças de Moçambique.
2025/12/3
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