O Cão

Paulo Vilanculo"

A adjectivação comparativa da Polícia da República de Moçambique (PRM), recentemente apelidada de forma insultuosa como “cão” lança uma reflexão sobre a desumanização. Mais do que um insulto, essa classificação revela a crise estrutural e moral de uma corporação abandonada pelo Estado, usada como instrumento de repressão e deixada à margem da dignidade profissional. Que motivação ética ou moral pode ter um profissional que é tratado como animal? No meio das manifestações marcadas por violência policial, violações de direitos humanos e repressão estatal, quem treina o cão para matar? quem dá a ordem para reprimir? A quem recai a responsabilidade, ao cão ou ao dono do cão? A quem deve ser responsabilizado, o agente que executa a ordem, o povo que protesta ou os que mandam reprimir? Se a polícia é do governo, a quem se deve levar aos tribunais: o cão, o dono do cão ou os civis manifestantes? Quem lucra com o medo instalado?A recente viralização do termo "cão", associado de forma depreciativa à figura do agente da Polícia da República de Moçambique (PRM), não é apenas um insulto gratuito, é um reflexo brutal da desvalorização institucional, política e social de uma corporação que, em tese, deveria ser a guardiã da ordem, da segurança e da integridade pública. O uso do termo em discursos do trabalho governativo, revela algo mais profundo, o abismo entre o discurso oficial e a realidade quotidiana vivida por milhares de agentes subalternos.

A adjetivação do polícia como “cão” carrega um alcance simbólico, psicológico e sociopolítico muito profundo, com consequências que podem ser tantas para a imagem pública da corporação, como para a autoestima dos próprios agentes. A adjetivação, se internalizada, reforça uma cultura de submissão cega, onde o polícia não pensa, apenas obedece. Isso torna perigoso para uma profissão que lida com vidas humanas e que exige discernimento ético constante. Para os agentes subalternos que vivem em condições precárias, mal pagos e sem reconhecimento, ser chamados de “cão” aprofunda o sentimento de inutilidade, indignação e revolta silenciosa.

Comparar o polícia a um “cão” desumaniza o profissional e reduz sua identidade a um instrumento de obediência cega, submisso e violento. Retira-lhe o raciocínio, a autonomia e a dignidade humana. Passa-se a ver o polícia não como um servidor público, mas como um “animal treinado para atacar”. Chamar um polícia de "cão", além de ser uma expressão insultuosa e desumana, expõe um cenário de indignação acumulada, não só da população, mas dos próprios membros da corporação forçados a obedecer cegamente ordens políticas e a sufocar, muitas vezes, as mesmas comunidades das quais fazem parte. Trata-se de um abandono institucional que transforma o polícia num bode expiatório de um sistema que o subjuga e, simultaneamente, o culpa. Enquanto os oficiais superiores da corporação, muitos deles mais próximos do poder político do que das trincheiras do dia-a-dia, mantêm regalias, carros de luxo e subsídios chorudos.

A ironia cruel é que o Estado, que tanto invoca a força policial como símbolo da sua autoridade, é o mesmo que abandona os seus membros à própria sorte. Ora, nas recentes manifestações por todo o país, seja contra a fome, as portagens, os resultados eleitorais, ou o custo de vida, assistiu-se a uma actuação policial marcada pela repressão desumana, transgressões de direitos humanos, espancamentos e até execuções sumárias. A polícia transformou-se em inimiga do povo, quando deveria ser sua defensora.  O agente que apertava o gatilho, era visível e fácil de condenar publicamente, mas, o verdadeiro mandante permanece nas sombras do poder, escudado pela impunidade e pelo silêncio cúmplice.

Quando um agente da polícia dispara balas reais contra cidadãos desarmados, quando espanca manifestantes ou invade casas durante protestos, não o faz por impulso pessoal, o faz sob ordens superiores, sob uma cadeia de comando que começa no topo: no ministério, no comando geral, no governo. É o Estado, em sua faceta mais autoritária e elitista, que usa o braço armado para garantir a manutenção do status quo, a contenção da revolta popular, e a repressão das vozes dissonantes. A responsabilização recai ao “dono do cão”, ou seja, do poder político que comanda a repressão, a justiça continuará cega, seletiva e cúmplice da impunidade. Porque o cão não morde sozinho, morde quando é mandado.

No entanto, em Moçambique, a inversão da justiça é a regra. Em vez de responsabilizar os que mandam reprimir, criminalizam os manifestantes. Julgam os pobres, os desempregados, os estudantes, os mototaxistas e os vendedores ambulantes. São os civis que vão para os tribunais, não os ministros que ordenaram o massacre. São os jovens com cartazes e tambores que acabam detidos, não os oficiais que mandaram disparar. A cadeia de responsabilidade é seletivamente ignorada. O cão é preso ou punido. O povo é julgado. Mas o dono do cão, aquele que solta, que treina e que alimenta o instinto repressivo, continua intocável, discursando sobre paz, ordem e estabilidade nos palanques, enquanto o sangue do povo ainda está fresco no chão.

A desvalorização não é apenas financeira: é moral, profissional e estrutural. Deve-se tomar a coragem de se deixaremos de tratar sintomas e começaremos a curar a doença. Encontramos na policia uma corporação que engole a falta de enquadramento digno no novo regime da Tabela Salarial Única (TSU), sem promoções transparentes e justas, sem seguro de vida funcional, sem alojamentos condignos e com subsídios quase inexistentes. E mesmo assim, são eles que diariamente enfrentam o crime, as manifestações, os desastres e a violência urbana, sem os mínimos recursos ou proteção legal.

A polícia deixa de ser vista como protetora, passando a ser temida como agressora. A polícia devia ser uma ponte entre o Estado e o cidadão, mas esta adjetivação rompe qualquer possibilidade de empatia, aproximação ou respeito, portanto, deve ser lido com cuidado, é perigosa quando mal interpretado, pois pode transformar o polícia em bode expiatório de uma cadeia de comando corrupta e autoritária. O uso do termo "cão", está no, entanto, Não como uma simples ofensa, mas como um grito disfarçado de frustração coletiva, tanto por parte de uma população que já não confia na polícia.

A adjetivação de “cão” não é apenas um insulto vulgar, é um sintoma de uma falência institucional profunda. Desnuda a degradação da imagem pública da polícia, denuncia a instrumentalização da força pública como máquina de repressão, e levanta a urgente necessidade de reformar não apenas os salários e as condições materiais dos polícias, mas também a cultura ética, moral e funcional da própria corporação. Se o polícia é treinado para “atacar” como um cão, então a violência deixa de ser exceção e passa a ser norma. E isso perverte o princípio básico do policiamento moderno: proteger e servir, com proporcionalidade e respeito aos direitos humanos.

O país precisa urgentemente de uma profunda reforma na política de segurança pública, não apenas no plano da repressão, mas no reconhecimento digno da missão dos seus agentes. Porque enquanto tratarmos os nossos polícias como cães, e os deixarmos viver como tal, não poderemos esperar que eles nos tratem como cidadãos. Se o Estado quer recuperar a autoridade moral da polícia, precisa começar por tratar seus agentes como cidadãos, e não como cães a serviço do medo.

2025/12/3