NA CIDADE DONDO EM MOÇAMBIQUE, PRESIDENTE DA REPÚBLICA RE-INAGURA ESCOLA ONDE ESTUDOU, UM SONHO QUE TANTAS CRIANÇAS GOSTARIAM DE LA ESTUDAR

Paulo Vilanculo"

A visita de Sua Excelência Daniel Chapo à Paróquia Santa Ana de Dondo, marcada pela entrega simbólica da Escola Nossa Senhora Auxiliadora ao Arcebispo Dom Cláudio Dalila Zuanna, revela mais do que um gesto político ou institucional. A referência a Caim, o irmão que falhou o cuidado do seu semelhante, expõe, ainda que, involuntariamente, a distância entre o discurso e a prática governativa. A narrativa bíblica Deus pode se questionar Caim sobre o paradeiro do irmão, hoje a população poderia perguntar aos seus dirigentes: “Onde estão as outras escolas das outras crianças?”, aquelas que continuam a estudar ao relento, sentadas no chão, expostas ao sol e à chuva, enquanto discursos triunfalistas celebram pequenas obras como grandes feitos. Isso revela, sobretudo, o abismo que se abre entre o discurso oficial e a realidade vivida pelas crianças do bairro de Caim, que continuam a estudar ao relento, sob o sol impiedoso, a chuva inesperada e a poeira que a cada rajada de vento parece apagar silenciosamente os seus direitos. É suficiente reparar apenas uma escola para sanar a dívida histórica deixada por anos de abandono?

 O presidente reabilitou e e entregou a escola destruída pelo ciclone Idai na devastação de 2019, num símbolo de resgate de esperança perdida, um cenário confronta-nos com uma verdade dura. Os dirigentes se dignificam mais pelas sombras do passado do que pelo futuro do seu povo revelam, na verdade, uma profunda crise de liderança, visão e compromisso com o bem-estar coletivo. O passado é então reinventado para justificar o presente. Cria-se uma cultura governativa onde importa mais parecer que fez do que fazer de fato. Em vez de assumirem a responsabilidade de transformar as realidades duras que afetam diariamente milhões de cidadãos, preferem agarrar-se às glórias antigas, aos feitos políticos que já não respondem às exigências do presente e às narrativas de heroísmo que servem mais para encobrir falhas do que para inspirar mudança. Esse apego ao passado torna-se um escudo conveniente: nele encontram conforto, legitimidade e proteção, enquanto o presente expõe incompetências, promessas não cumpridas e uma incapacidade gritante de oferecer soluções concretas.

Essa desconexão dos dirigentes face a realidade é ainda mais dramática quando se observa que muitos não sentem, nem de perto, as privações que enfrentam as populações que alegam representar. Na homilia discursiva, o presidente recorreu à história bíblica de Abel e Caim para ilustrar valores de união e responsabilidade, mas a metáfora ganhou contornos inesperados diante da realidade concreta da visita: a entrega de apenas uma única escola reabilitada após a devastação do ciclone Idai. A entrega institucional, envolta em formalidades e fotografias, não apaga a indignidade de ver um sistema que se vangloria de reabilitações enquanto mantém os mais vulneráveis à margem, traz contradição quando se sabe que, desde o Idai, inúmeras comunidades esperam por obras básicas que nunca saíram do papel. Este distanciamento cria uma liderança abstrata, desprovida de empatia, onde o povo deixa de ser uma comunidade de seres humanos e passa a ser apenas uma palavra usada em discursos de ocasião.

A história de Caim, evocada pelo presidente, transforma-se num reflexo da própria governação como um símbolo de omissão, onde quem deveria proteger e servir o povo parece repetir a atitude do irmão que vira as costas às suas responsabilidades. A evocação da história bíblica revela-se, mais do que uma figura retórica, ela torna-se um espelho incômodo do presente, onde as lideranças parecem distante da dor do seu próprio povo, incapaz de assumir plenamente o papel guardião do futuro das novas gerações. A consequência é um país que tropeça ciclicamente nos mesmos problemas da pobreza, exclusão, má gestão, desigualdade, promessas eternamente adiadas. E são sempre os mais vulneráveis que pagam o preço das lideranças que não lideram por criatividades e transformações, sobre tudo sobre o sofrimento das crianças que estudam ao relento, como as de Caim que não simboliza apenas o fracasso de políticas públicas, mas a falta de um projeto nacional que valorize a dignidade humana. Esta verdade impõe-se um país que vive preso ao passado que nunca avança, mas, apenas prolonga a dor do presente e compromete o futuro que teima em não chegar.

No contexto atual, Caim deixa de ser apenas um nome bíblico e passa a representar todas as crianças que, tal como Abel, continuam invisíveis e desprotegidas, vítimas das promessas não cumpridas e da indiferença institucional. A escola de Caim não é apenas um lugar; é um grito silencioso de esperança. E cada criança que ali sonha merece que esse sonho, finalmente, encontre paredes firmes, janelas abertas e portas que não se fechem perante a indiferença. A escola entregue não responde ao sonho que tantas crianças de Caim carregam no peito porque a reabilitação anunciada não alcançou aqueles que mais dela necessitam. É doloroso ver crianças sentadas no chão, improvisando carteiras com pedras, cadernos equilibrados nos joelhos cansados. Crianças que caminham longas distâncias e regressam para casas sem água, sem luz, mas que ainda assim insistem em sonhar.

A metáfora torna-se particularmente incisiva quando se observa que, diante de um cenário de destruição que afetou dezenas de escolas e milhares de alunos, a resposta governamental resume-se à reabilitação de apenas um estabelecimento de ensino. Num mar de necessidades urgentes, este gesto torna-se uma gota de restituição que tenta saciar um oceano de carências. No fundo, a metáfora mais verdadeira não é a que o presidente quis trazer, mas a que a própria realidade impõe, um país que continua à espera de líderes que não respondam como Caim, mas como verdadeiros guardiões do futuro e especialmente das crianças que ainda aprendem à sombra da exclusão.  Caim simboliza todas as crianças, famílias e comunidades que continuam abandonadas, esquecidas, entregues à sorte e desta feita, o povo aparece como Abel, vulnerável, sacrificado e os dirigentes como Caim, incapazes de proteger os seus, mas mesmo assim a justificar-se diante de todos de fazerem boas obras. A escola de Caim permanece assim como um sonho adiado, não por falta de vontade das crianças, mas por falta de compromisso concreto dos que governam. E, enquanto os discursos celebram a reabilitação de obras coloniais, a infância continua a ser sacrificada na sombra de glórias simbólicas.

2025/12/3