Moçambique, da democracia do medo e silêncio ao “mono” diálogo inclusivo

Paulo Vilanculo"

A “democracia do medo e do silêncio” é uma expressão profundamente simbólica e analítica, que revela o lado obscuro de cenários formalmente democráticos, mas estruturalmente, com actores, uns autoritários e autónomos, outros silenciados e ofuscados. A chamada democracia do medo e do silêncio é uma forma disfarçada sustentada não pela força das armas, mas pela força simbólica, do controle institucional e da manipulação social. Onde as eleições, embora periódicas, apenas são de aparência, são vistas por muitos como rituais de confirmação, e não como momentos de verdadeira escolha, constrói-se parlamento e constituição, mas, sem o vigor da liberdade de pensamento, da crítica e da alternância de poder.

Em Moçambique, este fenómeno manifesta-se de múltiplas formas. Tem-se apresentado através das estruturas partidárias que mantêm presenças nas instituições públicas, limitando o espaço de autonomia dos funcionários e cidadãos. Nestas instituições, por exemplo, cria-se ambientes psicológicos onde o cidadão aprende a autocensurar-se. As pessoas deixam de falar, não porque não tenham o que dizer, mas porque aprenderam que, em certas democracias, dizer a sua opinião é tido como perigoso. O medo torna-se o cimento invisível que mantém o sistema coeso. Este reconhecimento individual não é imposto apenas pela violência física, mas por mecanismos mais sutis: o medo de perder o emprego, de ser marginalizado politicamente, de ser excluído socialmente, ou de ser rotulado como inimigo do Estado.

O silêncio, por sua vez, é o produto desse medo e o reflexo é obediência coletiva, da resignação e da desconfiança. Quando o medo se torna norma, o silêncio torna-se virtude, a sociedade passa a valorizar a prudência sobre a coragem, a conveniência sobre a verdade e a crítica ao poder é muitas vezes confundida com traição ou falta de patriotismo. A democracia silenciosa é profunda pois, atua na consciência coletiva. O medo já não vem de fora, é internalizado. A democracia do medo e do silêncio é, portanto, um fenómeno que atinge o corpo, a mente e o espírito da nação, onde cidadão torna-se o próprio censor, o próprio guarda da sua liberdade. É o tipo de regime em que a liberdade existe apenas no papel, enquanto a servidão se disfarça de normalidade. E o poder, por sua vez, já não passa repressão de brutalidade, não mata com balas, mas com o tempo, o tempo que vai corroendo lentamente o senso de pertença, de esperança e de futuro, basta manter a ilusão de vigilância constante e, o resultado é uma sociedade paralisada, que vive entre o conformismo e a esperança tímida de mudança.

Os intelectuais adaptam o seu discurso, os cidadãos transformam o desabafo privado em única forma de protesto possível. A imprensa livre existente, opera sob constante vigilância e pressão econômica, levando muitos a praticarem uma “autocensura preventiva”, os jornalistas suavizam a crítica, assim, o medo se institucionaliza, e o silêncio se torna política de Estado. No plano político, o medo impede a alternância e a inovação. No plano social, destrói a solidariedade e a confiança, pois cada um teme o outro como potencial delator. No plano cultural, anula a criatividade e a ousadia, porque o pensamento livre passa a ser visto como ameaça. E, no plano moral, transforma o silêncio em estratégia de sobrevivência, uma sobrevivência que custa caro à dignidade coletiva. Desta forma, o medo cala as vozes e o poder manipula o discurso, a democracia perde a sua substância, restando apenas a forma.

A democracia verdadeira, para Arendt, não é apenas votar, mas participar ativamente da construção do sentido político da comunidade. A ausência desse espaço de ação coletiva transforma a política em administração, e o cidadão em espectador. A democracia verdadeira, nesse sentido, não é um sistema, mas uma prática ética e social de reconhecimento mútuo. A democracia verdadeira só floresce onde o medo não governa, onde o silêncio não é virtude e onde a palavra é ato de criação. Jürgen Habermas (1984) argumenta que a legitimidade democrática nasce do agir comunicativo, do diálogo livre de coerção, onde os cidadãos participam racionalmente na formação da vontade política.

A democracia verdadeira é aquela que cria condições para que todos tenham voz e vez, onde o camponês, o trabalhador, o estudante e o intelectual possam participar de forma igualitária no debate sobre o destino nacional. Boaventura de Sousa Santos (2002) chama a isso uma democracia de alta intensidade, na qual a soberania popular não se limita ao ato eleitoral, mas se estende à vida quotidiana, nas escolas, nas comunidades, nas instituições públicas e nos meios de comunicação. Do ponto de vista da filosofia social, Hannah Arendt (1960) acrescenta que a verdadeira liberdade nasce da ação e da palavra no espaço público, ou seja, da capacidade dos indivíduos se manifestarem, debaterem e agirem juntos em nome de um mundo comum. Como diria Freire, “a liberdade é o ato de se fazer sujeito da própria história” e talvez seja esse o grande desafio de Moçambique neste novo século: libertar-se, finalmente, do medo de ser livre.

Falar de emancipação e democracia verdadeira é falar de um processo inacabado, um horizonte que se constrói contra o medo, o silêncio e a dominação simbólica. A emancipação não é apenas libertar-se de uma potência estrangeira ou de um poder visível; é, sobretudo, libertar-se das estruturas invisíveis que perpetuam a dependência, a submissão e a incapacidade crítica. Como defende Paulo Freire (1970), “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. Essa comunhão é o ato político de tomar consciência, de perceber-se sujeito e não objeto das decisões que moldam a vida coletiva. A emancipação política exige, ainda, romper com o monopólio do saber e da verdade política. Michel Foucault (1979) alerta que o poder moderno não se exerce apenas pela repressão, mas pela produção de verdades convenientes, discursos que fazem o cidadão acreditar que não há alternativa. O primeiro passo emancipatório é, portanto, desnaturalizar o poder e reconhecer que o sistema não é destino, e que toda estrutura pode ser repensada. Quando o cidadão internaliza a ideia de que “sempre foi assim”, o poder torna-se eterno.

Em Moçambique, o desafio da emancipação passa, portanto, por reconstruir a noção de cidadania ativa, uma cidadania que questione, proponha e fiscalize. Como lembra Amílcar Cabral (1974), “ninguém pode libertar um povo se este não for sujeito da sua própria libertação”. Isso implica romper com a dependência partidária e com o medo histórico de confrontar o poder. A emancipação não é um gesto contra o Estado, mas um gesto de devolução do Estado ao povo. A emancipação é o contrário da submissão, é o despertar coletivo para a consciência crítica, o abandono da apatia e a recusa da obediência cega. Portanto, o desafio moçambicano não é apenas político, mas civilizacional. Por isso, o desafio moçambicano não está apenas em mudar leis, mas em reconstruir a cultura do diálogo, da escuta e da responsabilidade pública. É preciso reconstruir a confiança entre o Estado e o cidadão, garantir justiça social e devolver à política no seu verdadeiro sentido, o de cuidar do bem comum para todos.

 

2025/12/3