Gundana, um enredo de sofismas do Heroísmo moçambicano

Paulo Vilanculo"

“O enredo de sofismas” não é acusação póstuma; é uma critica cívica sobre como construímos os nossos heróis, quem decide a memória e a quem ela e serve. Num país onde a história oficial muitas vezes é substituída poro debates públicos, a morte de figuras emblemáticas deve ser ocasião de maturidade democrática em que honramos sem mitificar, recordar sem sentir, sem querer desumanizar.

Ao longo das décadas, a libertação foi narrada como epopeia linear, frequentemente blindada contra interrogações incómodas. Certas biografias foram elevadas a dogma, enquanto outras foram diluídas, omitidas ou instrumentalizadas conforme as conveniências. Feliciano Gundana é referido em alguns círculos políticos e discursos como uma figura ligada às primeiras articulações políticas da luta de libertação de Moçambique, num período ainda embrionário, anterior ou paralelo à institucionalização plena da FRELIMO. O seu nome surge associado a dinâmicas nacionalistas iniciais, contactos políticos, mobilização ideológica e debates que antecederam a consolidação do movimento da narrativa hegemónica da libertação. Ao contrário de outros dirigentes amplamente documentados, Gundana não ocupa lugar central na historiografia canónica da luta de libertação, o seu percurso permanece pouco sistematizado, com referências dispersas, muitas vezes orais, locais ou politicamente interessadas.

O enredo que envolve Gundana revela uma tensão entre o herói propalado e o sujeito histórico (in) concreto e, aqui abre-se um espaço fértil para o sofisma da simplificação excessiva, da retórica que se confunde entre a participação e autoria, a sacralização que desobriga o escrutínio que eleva um dado de “contributo”, mas de recuo e encobrimento da hagiografia que transformou a história em catecismo nacionalista de identidade política e da libertação de Moçambique. O título de “fundador político da libertação” atribuído a Gundana para alguns, trata-se de um reconhecimento tardio e inflacionado; para outros, de uma tentativa de reinscrição simbólica de actores marginalizados pela narrativa oficial dominante. A ideia de “fundador” nunca foi neutra, mas sim como produto de escolhas, recortes e silêncios.

A morte de Feliciano Gundana, figura incontornável à génese política da libertação de Moçambique impõe silêncio e respeito, mas também convoca memória crítica sobretudo quando a história nacional se constrói entre narrativas consagradas, disputas simbólicas e zonas de sombra que o tempo não dissolveu. Pode-se acreditar que a morte, paradoxalmente, liberta a palavra e permite revisitar percursos com serenidade, separando o facto da propaganda e o mérito real do capital simbólico acumulado. A libertação não foi obra de indivíduos isolados, mas de um mosaico de actores, correntes e contradições míticas da nossa historia moçambicana, muita parte dela silenciada pela narrativa oficial dos heroísmos sofismado.

Exaltar hoje a morte de Gundana exige mais do que louvor repentino e automático, exige sim uma contextualização, confronto de fontes e reconhecimento das ambiguidades do processo histórico moçambicano. Exige ainda admitir que a libertação também teria gerado formas de exclusão, e que alguns nomes foram usados como âncoras morais para legitimar práticas posteriores que traíram os ideais proclamados antes da FRELIMO (…). Sabe se que quem controla o arquivo controla a memória e consequentemente a Historia de muitos percursos não revelados (in) documentados, outros deliberadamente apagados, como a bomba encomenda para Eduardo Chivambo Mondlane, Urias Simango, Chicuarra Massinga, Kavandame, Joana Simeão, entre outros que jazem na trincheira da memoria e que permanecem inacessíveis na Historia de Moçambique “livre” dos libertadores. Falar de Gundana e de outros esquecidos não é apenas resgatar memórias individuais; é questionar quem decide o que é história e quem tem o direito de nela existir.

A ideia de uma história heroica não escrita em Moçambique não resulta do acaso nem da simples falta de registos. Ela nasce de uma escolha política profunda, silenciosa e persistente. Ao longo do tempo, a libertação nacional foi sendo narrada como um percurso fechado, com protagonistas definidos, datas consagradas e uma lógica linear que pouco espaço deixou para vozes paralelas. Nesse processo, muitas figuras que participaram nas primeiras articulações do pensamento nacionalista, como Gundana, foram empurradas para as margens da memória coletiva. Não se trata, necessariamente, de negar o seu contributo, mas de o tornar irrelevante perante uma narrativa oficial que precisa de poucos heróis para funcionar. Esse reconhecimento é incómodo porque expõe continuidades entre a lógica da libertação e certas práticas do poder no período pós-independência. Quanto mais restrito for o pelotão, mais fácil é concentrar a legitimidade histórica e política num único epicentro. Reconhecer outras trajetórias obriga a admitir que a libertação não foi homogénea, nem consensual, nem exclusivamente conduzida por uma só estrutura. Essa admissão fragiliza o mito fundador e abre espaço para perguntas que alguns preferem evitar.

Pode se acreditar que escrever essa história implicaria revisitar conflitos internos, divergências ideológicas e exclusões ocorridas durante e após a luta de libertação. Implicaria reconhecer que nem todos os nacionalistas cabiam no projeto político que venceu, e que alguns foram descartados não por falta de mérito, mas por incompatibilidade com a narrativa dominante. Contudo, a história não escrita não é menos verdadeira; é apenas menos conveniente. Assim, a recusa em escrever a história não revela ausência de matéria, mas medo do seu efeito. Porque cada herói esquecido devolvido à narrativa nacional obriga o país a olhar para si próprio sem filtros, a confrontar as suas contradições e a aceitar que a libertação foi plural, imperfeita e profundamente humana. O seu nome reaparece sobretudo em contextos de revisão crítica da história, reivindicação regional ou contestação da memória oficial da libertação. Que Gundana descanse em paz. e que a sua memória, como a de tantos outros, seja devolvida ao lugar mais honesto que a história pode oferecer, o da complexidade humana, longe do altar e perto da verdade.

 

2025/12/3