Entre a interdependência e a soberania: o dilema energético do Estado moçambicano

Paulo Vilanculo"

O anúncio do projecto do oleoduto Beira–Ndola, apresentado como um “marco de interdependência e progresso partilhado”, levanta uma questão de fundo: porque é que o Executivo moçambicano prefere inscrever-se num modelo de cooperação regional em vez de apostar num caminho de autonomia e soberania económica? As promessas de progresso partilhado e integração regional soam familiares, mas quem ganha mais nesta partilha? Até quando continuaremos a transformar a nossa economia interdependente? Até quando continuaremos a transformar a nossa economia interdependente? Até quando continuaremos a aceitar que a integração signifique subordinação e que a cooperação signifique renúncia? Por que o Executivo prefere canalizar recursos, energia e capital político para projectos que beneficiam o exterior, em vez de investir na infraestrutura interna?

 

Num contexto em que a região busca integração energética e estabilidade, projectos transfronteiriços como o Beira–Ndola tornam-se moedas diplomáticas de prestígio e visibilidade política. Um dos episódios menos debatidos, mas mais reveladores, da forma como Moçambique tem sido peça periférica nas grandes engrenagens económicas regionais. O Governo procura reforçar a sua imagem internacional como actor responsável e cooperativo no espaço da SADC. Assim, a escolha por um projecto “partilhado” pode permitir a Moçambique ganhar capital político e económico, mesmo que à custa da sua autonomia.

Beira–Harare: o precedente esquecido de uma integração desigual

O oleoduto Beira–Harare, erguido logo após a independência do Zimbabué, projetado como símbolo de cooperação e solidariedade pós-colonial, com promessa clara de partilhar infraestruturas e riqueza energética para libertar-se das dependências coloniais. Contudo, à medida que o oleoduto entrou em funcionamento, tornou-se evidente que a partilha era mais retórica que real. Enquanto o Zimbabué garantia o abastecimento estável e barato de combustíveis, Moçambique via se transformada num corredor de passagem, com retornos económicos ínfimos para o Estado e quase nulos para as comunidades. Mesmo assim, os contratos e acordos bilaterais foram mantidos quase intocáveis, sempre protegendo os interesses estratégicos do vizinho e dos parceiros externos, mais do que os do povo moçambicano.

Cahora Bassa: o espelho elétrico de uma soberania adiada

A energia de Cahora Bassa é, talvez, o exemplo mais simbólico e doloroso de uma independência que nunca chegou à economia. A história de Cahora Bassa continua a ser o espelho onde se reflecte a fragilidade da soberania económica moçambicana. Mas, ironicamente, a energia que brota do Zambeze ilumina o vizinho do Sul muito antes de chegar às aldeias e cidades do país que a produz. É o retrato cruel de uma independência sem emancipação económica. Durante décadas, a África do Sul foi o maior beneficiário de Cahora Bassa, comprando energia barata e transformando-a em motor da sua industrialização, enquanto Moçambique fica com os custos ambientais, sociais e diplomáticos do empreendimento. Mocambique continua a exportar energia em bruto e a importar pobreza em retorno. Cahora Bassa é, portanto, a metáfora viva da interdependência forçada, um modelo onde Moçambique fornece recursos, território e mão-de-obra, mas permanece na periferia dos lucros e do poder de decisão.

Temane– África do Sul: a lição esquecida de uma dependência energética disfarçada de parceria

A história recente do gasoduto de Temane é uma das mais ilustrativas de como Moçambique tem sido espectador do seu próprio potencial energético, um símbolo de desequilíbrio económico e diplomático, onde os ganhos bilaterais nunca foram verdadeiramente bilaterais. O gasoduto de Temane foi concebido sob o controlo e investimento maioritário da multinacional Sasol, que deteve, desde o início, o poder decisório sobre o volume, o preço e o destino do gás. Exactamente como hoje se anuncia o oleoduto Beira–Ndola, o projecto foi apresentado, na altura, como um marco de cooperação regional e integração energética, contudo, passadas duas décadas, a realidade mostrou-se bem diferente. A África do Sul beneficia de forma massiva do gás moçambicano, abastecendo as suas indústrias e consolidando a sua segurança energética, enquanto Moçambique fica com dividendos mínimos, limitados a impostos simbólicos e promessas de desenvolvimento social nunca concretizadas. Esta experiência de Temane deveria servir de lição estratégica. Mostra que interdependência sem equidade é apenas uma forma sofisticada de dependência. Quando o capital, a tecnologia e a gestão estão nas mãos do parceiro mais forte, o projecto deixa de ser partilhado, passa a ser explorado.

Oleoduto por construir e estrada ignorada, a cegueira estratégica de um Estado de costas voltadas para si próprio

A Estrada Nacional que liga Moçambique, via estratégica para o escoamento de produtos agrícolas, circulação de bens e mobilidade social, permanece num estado de abandono quase crónico. Buracos, pontes degradadas e trechos intransitáveis tornam o percurso um símbolo de desconexão nacional. Ignorar a reabilitação das estradas nacionais é, portanto, ignorar o próprio desenvolvimento nacional. Cada buraco numa estrada é um obstáculo à integração económica, à competitividade interna e à dignidade do cidadão. Enquanto os tubos e cabos que cruzam o país servirem mais aos vizinhos do que aos moçambicanos, Moçambique continuará a ser um território de passagem e não de progresso. É um paradoxo gritante: o país investe em infraestruturas de exportação, mas ignora as infraestruturas de ligação interna que poderiam consolidar a soberania e a coesão nacional.

Enquanto o Executivo se apressa em assinar acordos milionários para novos oleodutos e megaprojectos energéticos transfronteiriços, as estradas nacionais continuam em ruínas, isolando províncias, travando o comércio interno e sufocando a economia local.  m contrapartida, optar pela interdependência é, portanto, uma decisão de realismo político, mas também um reflexo das fragilidades estruturais do país. A “interdependência” funciona como um instrumento de legitimação da dependência e disfarça a falta de soberania sobre os recursos estratégicos. O que se anuncia como “progresso partilhado” pode ser, simultaneamente, um avanço técnico e um recuo político, dependendo de quem controla o fluxo dos fluidos e o destino do lucro.

A experiência do Beira–Harare, somada à energia de Cahora Bassa e do gasoduto de Temane para a África do Sul são exemplos clássico de como Moçambique exporta riqueza e importa pobreza, mostram como os ganhos regionais são definidos por quem financia, quem controla e quem lucra. E enquanto o discurso oficial insiste em “parcerias estratégicas”, a realidade insiste em lembrar que sem soberania económica, toda integração é subordinação disfarçada. A geografia que poderia ser vantagem competitiva transforma-se em via de extracção económica, onde o território serve de passagem e não de transformação.

O discurso da “cooperação regional” esconde, muitas vezes, relações desiguais de produção, em que a partilha é aparente e a dependência é estrutural. No fundo, o oleoduto Beira–Ndola pode simbolizar o dilema central da economia moçambicana contemporânea: cooperar para sobreviver ou afirmar-se para emancipar-se. O problema central é que Moçambique continua a posicionar-se como corredor logístico da riqueza alheia, e não como protagonista do seu próprio desenvolvimento. Hoje, quando se anuncia o oleoduto Beira–Ndola, repete-se a mesma narrativa de “progresso partilhado”, “integração energética” e “benefício mútuo”. Mas o passado de Temane, Beira–Harare e Cahora Bassa revelam um padrão que não pode mais ser ignorado em que Moçambique tem sido o corredor da riqueza dos outros. O país que gera energia, gás e combustível continua a depender de importações básicas e a suportar preços de consumo incompatíveis com a sua produção.

O desafio, agora, é romper o ciclo. Se o Beira–Ndola seguir o modelo do passado, Moçambique voltará a ser o país das promessas energéticas não cumpridas onde os tubos atravessam o território, mas o progresso continua a passar ao lado do povo. É o velho modelo colonial reeditado sob a capa da modernidade e da integração regional. O verdadeiro desafio de Moçambique não é apenas construir oleodutos, gasodutos ou barragens é construir autonomia económica, soberania sobre os recursos e justiça na distribuição dos benefícios. A verdadeira soberania energética não se mede pela extensão dos tubos, mas pela capacidade de transformar os recursos em desenvolvimento interno. E essa é uma dívida que o gasoduto de Temane deixou aberta e que o Beira–Ndola não pode repetir.

 

 

2025/12/3