“Dívidas (o) cultas”: crucifixo infernal do desgraçado povo moçambicano e a bênção triunfal da saída “gang”

Paulo Vilanculo "

O presente artigo questiona se a libertação antecipada dos condenados das dívidas ocultas em Moçambique representa uma punição exemplar ou apenas uma encenação de justiça. Quem realmente foi punido? Foi uma justiça exemplar ou para inglês ver? Estivemos, de facto, perante uma punição exemplar ou simplesmente perante uma encenação de justiça, numa jogada combinada entre governantes e lapidadores do Estado? O que fica para o povo? Que mensagem se envia a uma juventude desempregada e desencantada, quando se constata que o crime, afinal, pode compensar? Onde está o Estado quando os maiores lesados, os cidadãos comuns, continuam sem acesso à saúde de qualidade, sem escolas decentes, sem segurança alimentar, sem energia, mas com uma dívida colossal que condiciona o presente e hipotecou o futuro? Por que não um pacto de regime para trazer de volta os activos saqueados? A cortina que desce para os moçambicanos sobre um dos mais escandalosos de calote, o caso das dívidas milionárias, chegou a libertação antecipada dos protagonistas, após cumprirem pouco da “pena”. Os visados deixam a cadeia, não como reclusos derrotados, mas quase como figuras públicas em espécie de heróis mal compreendidos, numa sociedade onde o crime de colarinho branco, saem em liberdade como se de num teatro se tratasse, bem ensaiado, os protagonistas saem “da cena” como heróis de cabeça erguida, entre sorrisos discretos e de recomeço, livres, talvez mais ricos, seguramente mais informados, e talvez até mais perigosos, pois testaram os limites do sistema e saíram praticamente ilesos. Transparece a impressão de que tudo não passou de um teatro judicial cuidadosamente coreografado de demostração de uma frieza ao povo e firmeza aos doadores internacionais, mas garantir o não rompimento de pactos ocultos entre cúmplices. A prisão, longe de ser um reduto de reclusão austera, pareceu por vezes um retiro político. A elite corrupta nunca deixa de ser elite, mesmo atrás das grades. A dita prisão quase foi transformada em mais hospedagem do que em punição. Isso revelou mais a fragilidade da separação de poderes do que a força da justiça moçambicana. Se houve verdade, ficou abafada por detrás das paredes altas da impunidade. Se houve castigo, nem parece. Se houve justiça, foi apenas encenada. A narrativa da "justiça feita" as sentenças foram proferidas com algum peso simbólico. Mais do que uma punição exemplar, o que vimos foi uma operação de contenção de danos, uma “lavagem institucional” da imagem do Estado, que termina com a “gang” a sair pela porta da frente e o povo a continuar de joelhos. A libertação dos condenados levanta interrogações sobre a seriedade da justiça moçambicana e a estrutura do próprio sistema prisional. Para o povo moçambicano, o que se esperava como justiça, transformou-se numa amarga peça de ilusionismo político e jurídico. Enquanto isso, os autores principais, com ligações a círculos de poder político e económico, continuam a viver sem grandes sobressaltos. Os nomes apontados como mandantes ou cúmplices, nunca viram a porta de uma cela. O caso sugere muito mais um acordo silencioso entre governantes e operadores do desfalque, onde a prisão serviu apenas como momento de expiação pública e temporária, em troca de proteção dos verdadeiros mandantes, garantia de que segredos não seriam revelados, e manutenção de canais de impunidade abertos para futuras manobras semelhantes. Tudo isso ocorre enquanto milhões jazem enterrados ou em cofres bancários lavados com nomes de empresas fantasmas, fundações familiares e testa-de-ferros. Isso é mais do que um crime: é um genocídio económico e moral. Os “exilados da cadeia” retornam agora em liberdade sem que o erário público tenha recuperado os mais de dois mil milhões de dólares que foram surripiados aos moçambicanos. Esta hipótese ganha força à medida que o Estado não consegue recuperar os valores desviados, não persegue os bens dos condenados, e nem sequer revê as políticas estruturais que permitiram tamanha burla. A saída não estaria apenas no Código Penal mas sim na suplica da vontade política, na pressão popular organizada, e na redefinição do pacto social, com um verdadeiro pacto de regime, não de elites, mas de redenção nacional, implicaria dar amnistia condicionada a devolução total dos bens, obrigação de investimento em áreas sociais (agricultura, saúde, educação), e criação de fundos públicos para emprego juvenil e isso não é impunidade. O sociólogo Helder Jauana defende que a necessária justiça restaurativa estratégica, capaz de recuperar os recursos desviados e transformá-los em políticas sociais, ao invés de manter uma justiça simbólica que apenas protege os poderosos. Jauana, critica a ausência de um pacto de regimes que permitiria a devolução dos ativos roubados e o seu reinvestimento no país em troca da despenalização dos infratores. A proposta de um “pacto de regime”, onde o Estado negociaria com os saqueadores para despenalizar em troca de devolução de activos e reinvestimento nacional, seria uma via menos simbólica e mais pragmática de justiça restaurativa. Isso já foi aplicado com relativo sucesso em países como, por exemplo, na Nigéria, que recuperou bilhões com acordos assinados com familiares de Abacha; no Brasil, com delações premiadas e acordos de leniência na Operação Lava Jato e, no Ruanda, que após o genocídio, criou tribunais de reconciliação comunitária. Porque que o legislador, que representa teoricamente o povo, não promove um pacto de regime estratégico e corajoso, como propõe Jauana, com o objetivo de, pelo menos, reaver parte dos bens saqueados, ao invés de manter a hipocrisia de uma justiça seletiva, punitiva apenas para aparência e impotente no essencial? A não adoção de pactos de regime como o proposto por Jauana não é acaso nem ignorância é escolha deliberada pela manutenção do status quo. Entende se aqui que a não adoção de tais pactos não é por ignorância, mas sim por interesse e cumplicidade dos detentores do poder. O silêncio e a inação do legislador não são neutros, são expressões claras de cumplicidade estrutural. Muitos dos que hoje legislam, fiscalizam ou julgam, estão ligados direta ou indiretamente aos masseamento do Estado. Ou seja: um pacto de regime implicaria que os próprios predadores entregassem a caça que implicaria a reabilitação dos assaltantes implicaria exposição de redes políticas, empresariais e familiares e trazer o dinheiro de volta revelando se os envolvidos no ciclo da corrupção financeira e política. A “gang” saiu pela porta da frente, enquanto o país continua aprisionado à dívida e ao descrédito. É impossível não ver na saída da “gang” uma espécie de fecho da bolada: o dinheiro sumiu, os beneficiários diretos jamais serão todos identificados, e os poucos condenados já estão novamente a passear a classe. O povo vai continuar a pagar em silêncio, sem escolha, sem justiça, com a pobreza absoluta como única herança legítima deixada às populações, onde crianças vão continuar com barrigas inchadas de fome, mães sem parteiras, sem medicamentos, num Estado que orgulhosamente diz estar a crescer. Fica o desânimo, a descrença, o sentimento de impotência diante de um Estado capturado por interesses privados, onde os pobres pagam a conta da elite, e a justiça é apenas um espetáculo em palco montado para distrair o público.

2025/12/3