
Paulo Vilanculo"
O recente episódio envolvendo os jovens acusados de gerir a página digital associada ao activista Unay Cambuma voltou a expor, de forma crua e perturbadora, as fragilidades profundas do sistema judicial moçambicano. O Tribunal Judicial da Cidade de Maputo decidiu libertá-los mediante pagamento de caução para que aguardem o julgamento em “liberdade”, mas a palavra torna-se amarga quando contrastada com as imagens divulgadas pela Luz TV, onde o país assistiu, estupefacto, a vultos humanos debilitados, corpos que mais pareciam restos de vidas espremidas entre celas, interrogatórios e a sombra pesada de uma justiça que insiste em confundir a legalidade com vingança. Que Estado de Direito permite que presumidos inocentes saiam quase como cadáveres das mãos do Estado? Que sistema de investigação se esconde atrás de formalidades quando a dignidade humana é espezinhada? Até que ponto denuncias e criticar nas redes socias aos governantes é crime? E, sobretudo, que futuro terá um país onde a crítica é confundida com crime?
As redes sociais, hoje são parte inevitáveis do espaço público, tornaram-se palco natural de participação política, denúncias e escrutínio do poder. O Facebook, TikTok ou qualquer outra plataforma são hoje espaços onde se exerce cidadania. A acusação de gestão digital, envolta numa narrativa de ameaça à ordem pública, soma-se ao crescente padrão de intimidação a vozes críticas e à tentativa de controlar, pela força, o espaço digital moçambicano. Num país onde a Constituição proclama liberdades, a realidade mostra que exercer esses direitos pode custar caro aos seus cidadãos. O quadro constitucional parece esbarrar no que muitos classificam como uma prática de intimidação institucionalizada. A liberdade de expressão não é concessão do governo; é um direito adquirido pelos cidadãos. A Constituição da República assegura, no seu artigo 48, a liberdade de expressão, opinião e imprensa, garantindo que nenhum cidadão deve ser censurado por manifestar o seu pensamento.
como é que um nome fictício, usado online, criado para proteger o autor, se transforma repentinamente em “identidade” e até em suposta prova judicial? Como pode um Estado condenar alguém com base numa identidade que não existe?
O uso de pseudónimos é histórico, legítimo e até protegido em muitos sistemas democráticos. É apenas uma marca de autoria, um nome escolhido para representar uma voz, um pensamento ou um estilo. Autores, activistas, jornalistas e denunciantes usam pseudónimos própria legislação de imprensa reconhece pseudónimos como uma forma válida de protecção de identidade. O que há, nalguns contextos, é medo e é precisamente esse medo que os pseudónimos tentam contornar. Jornalistas, escritores, activistas e denunciantes recorrem a nomes fictícios para garantir segurança, evitar represálias ou simplesmente preservar a liberdade criativa.
No plano jurídico, um pseudónimo é apenas uma marca de autoria, não um dado que identifica o cidadão. Um pseudónimo não é, por si só, uma identidade e muito menos pode ser considerado automaticamente “facto de prova” num processo judicial. Para entender como os tribunais lidam com pseudónimos, é preciso separar três níveis: identidade real, identidade digital e prova jurídica. Na verdade, um pseudónimo nunca foi e legalmente nunca deveria ser tratado como identidade civil. Não há crime em escrever sob pseudónimo. Tratar pseudónimos como identidades não é uma prática legal, mas sim um atalho perigoso usado por sistemas que pretendem controlar a crítica social. No entanto, o pseudónimo deixa de ser tratado como anonimato e passa a ser usado como etiqueta política para justificar perseguições. Ao tratar um pseudónimo como prova, a justiça corre o risco de transformar ficção em condenação, e anonimato em arma política. O mais grave é que, ao fazê-lo, fragiliza não apenas indivíduos, mas o próprio Estado de Direito.
Quando é que denunciar abusos e criticar governantes nas redes sociais passou a ser tratado como crime em Moçambique? Mas por que razão os governantes têm medo de ser criticados?
Criticar governantes e denunciar abusos de poder nas redes sociais com base em factos, indícios, documentos ou testemunhos, isso não é crime, é participação cívica. Pelo contrário, é um direito constitucional em qualquer Estado que se reclama democrático. Ou seja, criticar governantes, denunciar má gestão, corrupção ou violações de direitos é uma prática cidadã e não crime. Os governantes têm dever acrescido de tolerância à crítica é assim em todas as democracias. A criminalização tácita da opinião pública revela um padrão preocupante: um Estado que reage à crítica com repressão, em vez de responder com transparência. Denúncias de corrupção, má governação, abusos de autoridade ou violações de direitos humanos, elementos essenciais para o funcionamento de qualquer democracia, são frequentemente interpretadas como “ataques”, “difamação” ou “desinformação”, mesmo quando há indícios concretos ou testemunhos que sustentam as alegações.
O músico moçambicano Amândio Munhequeia, mais conhecido por “Doppaz”, foi encarcerado sob prisão preventiva indiciado pelos crimes de incitamento a desobediência colectiva e instigação a um crime. “Na sequência da publicitação de vídeos por via das redes sociais que atentam contra a imagem e integridade do Presidente da República e seus familiares, foi aberto um processo-crime”, leu-se no comunicado na altura. O activista social Joaquim Pachoneia, que se define como comunicador e defensor de direitos humanos, foi acusado de difamação pelo ex-delegado do Instituto Nacional de Transportes Rodoviários (INATRO), Hilário Macie, no Tribunal Judicial da Cidade de Nampula. Pachoneia, conhecido pelas suas denúncias públicas contra casos de corrupção, reafirmou que está a responder em tribunal por actos praticados no interesse da comunidade. “Eu denunciei um caso de corrupção no INATRO. Se acharem que eu não tenho razão, que me prendam”. Entretanto, o ministro dos Transportes confirmou as denúncias e exonerou o delegado. Agora, sou eu quem está a ser processado”, declarou ao Jornal Rigor.
Quando o Estado: prende jovens por posts, chama activistas de “agitadores”, acusa páginas digitais de “desinformação” sem provas, tortura ou ameaça cidadãos, isso resume-se em perseguir opinião política, algo proibido pela Constituição e pelos tratados internacionais assinados por Moçambique (como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos). Nesta senda lê-se um Estado persegue o crítico em vez do corrupto, onde o problema é apontado para a voz que denuncia, num poder que teme ser denunciado. Neste contexto, a caução funciona como um verniz jurídico para uma mancha que permanece: a manobra intimidatória. No caso “Unay Cambuma”, as imagens não apenas chocam, denunciam. Denunciam a violência institucionalizada, a tortura subtil e aberta, a punição sem provas e muito menos sentença que antecede qualquer processo judicial. O que se viu à exposição pública são vultos de jovens debilitados que deveria alarmar a qualquer democracia em construção, visto que, o caso em apreço não é apenas jurídico, é político, social e profundamente desvenda a violação dos direitos humanos fundamentais e demonstra-se que, em vez de fortalecer-se a liberdade e confiança dos cidadãos, prima-se numa lição de intimidação e no recado tácito de que pensar diferente tem consequências.
O que devia ser um procedimento normal de detenção transformou-se num espectáculo de horror, onde cidadãos, ainda presumidos inocentes, surgem semimortos, fragilizados, como se o próprio sistema tivesse decidido castigá-los antes mesmo de os ouvir. Ao insistir em tratar críticos como criminosos, o Estado desloca o foco: deixa de ser guardião dos direitos e passa a ser vigilante do silêncio. Ao perseguir um cidadão por uma simples opinião, o Estado está a violar a própria Constituição. O verdadeiro crime é transformar o medo em política de Estado. Num país onde as instituições deveriam proteger, o caso “Unay Cambuma” torna-se mais um capítulo de uma justiça que parece mais inclinada a controlar do que a garantir direitos, mais ansiosa por punir críticos do que por defender a Constituição.
2025/12/3
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