A VIGÍLIA PARA ÚLTIMA SAFRA DOS NEOCOLONIALISTAS

Paulo Vilanculo"

(Reflexão sobre a ruptura dos governantes em Moçambique)

 Em Moçambique, a permanência de figuras históricas da luta de libertação nos centros de poder tem perpetuado uma cultura política excludente, em que o partido dominante se confunde com a própria identidade nacional. O texto desafia o país a repensar os alicerces da sua identidade nacional e a romper com os mecanismos internos de neocolonialismo que continuam a negar o direito pleno de ser moçambicano a todos. Sob o manto da libertação, construiu-se uma elite que reproduz práticas de dominação e exclusão, transformando o sonho de independência num processo adiado e desigual. Este artigo analisa criticamente o papel dessa “última safra” de libertadores e questiona se o seu fim representará, de facto, uma oportunidade para o surgimento de uma cidadania autêntica, inclusiva e democrática em Moçambique. Há quem defenda que Moçambique está num ponto de viragem. Mas será que o fim dos neocolonialistas está mesmo próximo? Ou estaremos diante de uma mutação cíclica, onde os nomes mudam, mas os métodos e os vícios permanecem? Havera a possibilidade real de ruptura com um sistema excludente e a repetição crónica de ciclos de dominação, apenas com novos protagonistas?

 Em pleno século XXI, Moçambique vive o paradoxo de ter conquistado a independência formal, mas não a liberdade de ser na diversidade. Moçambique hoje tornou-se um país onde não há pão para todos, onde o progresso, tão prometido em tempos eleitorais, é constantemente adiado, um sonho empurrado para um futuro incerto, sen die. A estabilidade que, para o cidadão comum, significa desemprego, hospitais sem medicamentos, escolas sem professores e pontes que ligam o nada ao lugar nenhum. Enquanto isso, erguem-se mansões, multiplicam-se negócios obscuros, acumulam-se fortunas. A cidadania passou a ser condicionada pela cor partidária, o acesso a recursos públicos é reservado aos círculos do poder e os direitos fundamentais são distribuídos por quotas invisíveis. A herança do colonialismo foi subtilmente apropriada por essa nova classe dominante, que se autoproclama guardiã dos ideais da luta armada. O que vemos é uma substituição de anos de senhores colonos para senhores de partido. Ou seja, uma escravidão de alma e consciência, em que os moçambicanos são impedidos de se reconhecer como sujeitos livres, pensantes, construtores da sua própria história. A persistência de homens que se autointitulam libertadores e “donos” da pátria moçambicana parece orientar, ainda hoje, a ganância e o apego ao poder de certos camaradas que, de forma sorrateira ou descarada, perpetuam a via partidária como única forma legítima e identitária de se ser moçambicano. Sob o disfarce de unidade nacional, a narrativa hegemónica construída desde os primórdios da República permanece intacta como uma relíquia sacralizada.

Moçambique está num ponto de viragem, sim está, mas devia ser uma viragem inevitável para uma escolha: ou o país rompe com o modelo de novos colonizadores internos ou será condenado a viver sob uma nova tirania silenciosa, longa, consentida. A elite política nacional é muitas vezes composta pelos mesmos rostos de sempre, reciclados em novos cargos, parece ter feito um pacto silencioso: conservar privilégios em nome da estabilidade. Não seria um exagero dizer que, se o país continuar nesta rota, pode viver séculos de uma nova forma de escravidão, marcada não por correntes físicas, mas por: captura institucional pelas elites partidárias, educação empobrecida que inibe o pensamento crítico, pobreza gerida como estratégia política e dependência económica externa e endividamento crónico. O fim dos neocolonialistas não será decretado por discursos ou reformas cosméticas. Mesmo que a geração dos libertadores desapareça do palco político, se as práticas, os sistemas de exclusão e a lógica de domínio partidário continuarem, a mudança será apenas estética. A sucessão geracional dentro dos partidos no poder parece mais preocupada em renovar rostos do que renovar valores. Os jovens que entram no sistema são treinados para repetir os mesmos comportamentos de submissão, enriquecimento ilícito e exclusão do outro. Assim, corre-se o risco de uma "transição de aparência", onde o neocolonialismo interno se veste com novas roupas, mas mantém a mesma lógica predadora: o povo como massa de manobra e os recursos do Estado como herança de família. O poder será reciclado em novas figuras que repetem os mesmos erros, tal como já se viu em muitas "transições" em África.

A emergência dos lesa-pátrias não é uma hipótese remota, mas é um risco iminente. A chamada “nova era dos lambe-botas”, marcada por jovens emergentes que ascendem ao poder não pela competência ou mérito, mas pela fidelidade cega e bajulação aos chefes políticos, pode representar uma fase ainda mais corrosiva do sistema. A transição de uma era dos “libertadores acomodados” para a era dos “lambe-botas tecnocratas” não representa avanço algum. Pelo contrário, representa o refinamento de um projeto de poder que nega a soberania popular, viola a dignidade nacional e fragiliza ainda mais a República. Os “lambe-botas” não questionam, não propõem, não inovam, apenas obedecem. Isso gera um apagamento da inteligência política, do pensamento crítico e da capacidade de resolver os problemas reais da nação. São bajuladores que têm como principal função proteger a imagem do líder, e para isso, perseguem críticos, manipulam informações, promovem cultos de personalidade. Essa lógica promove autoritarismos disfarçados, criando uma cultura de medo e obediência cega, incompatível com qualquer democracia. Ao promoverem a fidelidade ao chefe em detrimento da fidelidade à Constituição ou ao bem comum, os lambe-botas ajudam a minar os valores fundadores do Estado moçambicano: justiça social, igualdade, unidade na diversidade, soberania do povo. Eles passam a servir apenas interesses de grupo, são, nesse sentido, lesa-pátrias em farda civil, tornando assim, a gestão pública uma continuação da vaidade dos superiores, e não uma resposta aos desafios do povo.

Se o fim da era dos libertadores vier sem um projeto alternativo sólido, ético e democrático, o vazio pode ser preenchido por populismos, autoritarismos disfarçados ou neocolonialismos externos, com novas formas de submissão económica e cultural. Os direitos dos cidadãos não dependem apenas de boa vontade política, mas de sistemas de justiça, educação, saúde e administração pública funcionais e inclusivos. Sem instituições públicas fortes, imparciais e despartidarizadas, qualquer mudança de liderança é frágil. Portanto, o que é necessário além do fim da era dos “libertadores” deve ser acompanhada pela reforma institucional profunda e real despartidarização do Estado, com uma elite política não baseada em heranças revolucionárias, mas em competência, ética e serviço público, com Justiça e reparação histórica, reconhecendo que muitos moçambicanos foram marginalizados mesmo após a independência, promovendo, desta forma a participação popular real nos processos de decisão, não apenas em eleições e na reeducação da cidadania, com base em pensamento crítico e valorização da diversidade.

É urgente resgatar o verdadeiro sentido de independência. A democracia não pode continuar a ser uma encenação elitista. É preciso reconfigurar o modelo político que reduz a participação cidadã ao voto quinquenal e limita a representação às siglas partidárias. É necessária a “última safra” da colheita pós-colonial de uma elite que se finge revolucionária, mas atua como burguesia neocolonial. A última safra de “libertadores vitalícios” parece querer prolongar a sua influência até ao esgotamento final do país em esperança de uma dignidade. A última safra precisa ser, de facto, numa pátria que já não aguenta mais sementes de ganância. O fim da era dos libertadores pode abrir espaço para uma nova narrativa de identidade e cidadania. Mas isso será transformador se vier acompanhado de vontade coletiva, ruptura com práticas de exclusão e construção de um Moçambique plural, democrática e profundamente humano.

 

2025/12/3