A Educação Multicultural Como Um dos Caminhos do Bem-Estar Social

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O multiculturalismo, enquanto movimento teórico, surge em meados do século XX, sobretudo nos Estados Unidos da América, em resposta aos conflitos étnicoculturais que se caracterizavam na dificuldade de alguns indivíduos e grupos poder acolher e conviver com a pluralidade e as diferenças socioculturais. Foi inicialmente uma reação contra a tendência monoculturalista que pretenderia universalizar os conteúdos de uma única cultura. O multiculturalismo advogava então a urgência de olhar a sociedade como uma realidade de identidades plurais, com diversidades baseadas na raça, na língua, na religião.

Tendo como pano de fundo alguns conflitos militares, buscando um exemplo nosso aqui em Cabo Delgado, há necessidade de um “bate-papo” com as lideranças religiosas, tendo como objectivos reflectir sobre os melhores caminhos para a coexistência respeitosa e pacífica entre todos os integrantes da sociedade moçambicana, no quadro de um Estado laico. Essa reflexão prestará particular atenção à questão do papel da educação multicultural e acadêmica na disseminação de valores que ajudem a criar um ambiente intercultural saudável na sociedade.

As lideranças religiosas, no seu papel de educadores, têm maior responsabilidade sobre o que ensinam: os valores que incutem nos seus círculos de influência. O que os pastores, os padres, os maulanas e sheiks ensinam e transmitem nas catequeses, escolas dominicais, madrassas, que contribua para uma sã convivência social. A educação, enquanto processo social que envolve muitos actores (famílias, instituições, grupos), apresenta-se como o caminho que nos pode conduzir a uma convivência e gestão sã da riqueza das nossas diferenças.

Embora a globalização tende a uniformizar algumas formas de vida social (comida, vestuário), a humanidade não se conforma com a homologação, porque há cada vez mais a consciência de que as diferenças (étnicas, culturais, religiosas, etc), longe de serem problema devem ser encaradas como riquezas.  A pergunta chave é: que desafios encontramos na nossa sociedade que apelam para a opção por modelos educacionais que tenham presente a multiculturalidade e a interculturalidade que caracterizam o nosso mundo, em geral, e o nosso país, em particular?

O mundo está perdendo suas fronteiras e as culturas nacionais tornar-se-ão híbridas. O primeiro fenômeno desafiante no nosso tempo é a globalização e seus rostos concretos. O mundo globalizado gerou situações que são um verdadeiro desafio à educação:  - verifica-se uma grande mobilidade humana. Povos que, no passado, viviam em longitudes ignotos, hoje interagem através do comércio, do turismo, dos movimentos migratórios, da busca de refúgio, o que resulta em relações interculturais inevitáveis;  - constata-se uma diversidade cultural: diferentes modos de vida, tradições linguísticas, religiosas, políticas e étnicas, de competências e saberes que devem coabitar nos mesmos espaços - a interculturalidade, ou seja, os relacionamentos entre diversificadas realidades culturais faz emergir novas formas de pertença, novas formas de cidadania, novo quadro de direitos, mas também novos conflitos e formas de (auto) exclusão, dificuldades de comunicação e compreensão recíprocas.

O multiculturalismo pode ter dois horizontes:  - Na forma embrionária, seria um multiculturalismo folclórico, que se dedicaria a evidenciar a pluralidade cultural nos seus aspectos exóticos /externos.  - Na forma crítica e da interculturalidade, o multiculturalismo seria uma forma de reflexão para a promoção da convivência das diversas identidades. É mesmo nos Estados Unidos, num contexto de injustiças raciais e segregacionistas, que iniciou a perspectivação de uma educação multicultural, visando transformar a “escola” num lugar de interação cultural. De facto, educar um ser humano que vive neste ambiente multicultural, requer novas abordagens metodológicas, pedagógicas e didáticas: como gerir a diversidade cultural, as identidades, os conflitos, o universal e o particular, os choques, as exclusões presentes na sociedade global e local? Como construir a coesão social e fazer da diversidade uma riqueza e não ameaça? Como passar da multiculturalidade (muitos diversos) para a interculturalidade (relacionamento/interação) saudável dos diferentes? Uma resposta urgente: uma educação consciente da multiculturalidade e que promova a interculturalidade.

A educação é muito importante na formação de gerações de valores como o respeito, cidadania crítica e valorização da pluralidade, por isso, é urgente que os currículos de formação e educação incluam a questão da multiculturalidade. Cobra-se assim da educação e, mais especificamente do currículo, grande parte das medidas para a formação de cidadãos abertos ao mundo, flexíveis em seus valores, tolerantes e democráticos. Urge, por isso, que todas as instituições educadoras (religiosas, acadêmicas, profissionais) invistam em currículos que respondam a estas urgências.

A educação multicultural é aquela que valoriza e promove a diversidade cultural, questiona diferenças e dogmas, dinamiza as identidades contra a petrificação, e por isso estabelece conexões entre currículo e culturas. A educação multicultural, deve ser concebida como uma prática individual e social visando a tomada de consciência da diversidade. Aqui coloca-se a questão do papel das instituições educativas em torno do multiculturalismo. As problemáticas interculturais implicam o desenvolvimento de competências culturais, sociais, pedagógicas, comunicacionais, individuais e de cidadania, que permitam interações sociais harmoniosas entre os indivíduos e as culturas, e que promovam a consciencialização cultural, a comunicação e o diálogo intercultural e o funcionamento democrático das sociedades. Não podemos mais ignorar a multiculturalidade nem relega-la ao discurso informal.

As nossas diversidades étnicas e religiosas não podem continuar a ser comentadas apenas nos “chapas”, barracas, nas igrejas ou nas mesquitas.  A consciência em torno da multiculturalidade e da interculturalidade urge não apenas como valores em si mesmos, mas também como instrumentos de promoção do outro valor incontornável: o bem-estar social. O reconhecimento das pluralidades culturais desafia a educação e a actividade educadora a adoptarem novas intervenções impactantes no tecido social. Os currículos e todo o material didático devem olhar os espaços educacionais como lugares onde a multiplicidade e diversidade culturais são riquezas. Em cada circunstância educacional haverá que avançar em aspectos específicos:  Adopção de uma postura de crítica cultural, que permita aos educandos e educadores analisarem racionalmente suas identidades culturais, para desconstruir mitos e preconceitos e construir solidariedades saudáveis.

A promoção duma visão plural e culturalmente diversificada da realidade e do mundo não se pode confundir com a proclamação de um relativismo total, em que tudo seja aceite acriticamente: o diálogo deve basear-se em autênticos valores éticos, que a espécie humana partilha.

A “escola”, no sentido geral, (enquanto instituição de socialização e integração, espaço de encontro, convivência e aprendizagem, de aquisição de capacidades e competências) deverá ser dotada de meios humanos, pedagógico/didáticos, adequando o seu sistema curricular para que promova com eficácia uma educação e um ensino multi/intercultural. O currículo educacional deve fazer com que sejam desvelados e denunciados processos excludentes e estereótipos; deve capacitar-nos a denunciar o que na cultura é racional e legalmente contrário à justiça e ao bem humano; deve incluir conteúdos que promovam uma cidadania crítica, os valores da compreensão, do respeito, da convivência, da solidariedade e o respeito pela diversidade.

Somente assim, a educação, no contexto das instituições educativas, desempenhará realmente o seu papel na transformação social, na dinamização de potencialidades de crescimento ético e humano.  Os educadores devem ser formados em pedagogias interculturais, para que sejam agentes de mudança, capazes de práticas emancipadoras de gestão das diferenças, dum ensino dialógico interdisciplinar, e ainda sejam capazes de conhecer a sua identidade cultural e ter consciência dos próprios estereótipos excludentes.

Precisamos desenvolver uma política educacional consensual e assumida por todos, que consagre a diversidade, o respeito e aceitação de todos, havendo direitos e deveres iguais para todos. Desta forma, poderemos assegurar melhor o desenvolvimento do sentido de cidadania no qual cada um de nós, enquanto cidadão, possa desenvolver sentimentos de empatia e solidariedade face aos outros e às outras culturas. São necessários organismos formais e informais de monitoria dos discursos religiosos nos púlpitos e meios de comunicação social: os incitamentos ao ódio do diferente, a autoreferencialidade institucional que diabolisa o outro, as doutrinas que promovem proselitismos intolerantes, tudo isso deve estar sob monitoria para que tais focos latentes de instabilidade social sejam eliminados do espaço público. É preciso redescobrir e promover uma característica peculiar do povo moçambicano quanto a gestão das diferenças culturais e religiosas: a maleabilidade e elasticidade nos relacionamentos.

De facto, os dados socioantropológicos nos dizem que as pessoas casam-se sem olhar pela etnia nem pela religião, pessoas de religiões diferentes estão presentes nas festas, nos falecimentos, no bairro, no poço, no chapa, etc. em sum, uma educação multicultural exige que tornemos as várias componentes do nosso sistema educativo abertas e intervenientes nas problemáticas sociais da interculturalidade; a educação multicultural é o caminho para que se faça da diversidade uma oportunidade de aprendizagem e enriquecimento recíprocos, num mundo globalmente interdependente e sociedades heterogêneas; a educação multicultural é o principal instrumento para termos uma sociedade na qual a convivência pacífica da diversidade cultural, política, religiosa, étnica seja possível; sociedade, na qual diferentes comunidades culturais, étnicas, políticas e religiosas convivem e se empenham na construção de uma vida em comum, ao mesmo tempo que se enriquecem reciprocamente com as suas diferenças; a educação multicultural exige educadores preparados, eles mesmos convencidos do valor da interculturalidade. Para isso, urge repensar ações pedagógicas na formação dos educadores, com temáticas que promovam sensibilidade na pluralidade cultural e na solidariedade humana. Em sociedades cada vez mais diversificadas como é a nossa, torna-se indispensável uma educação que garanta interações harmoniosas entre as pessoas e grupos com identidades culturais diferentes.

2025/12/3