Quando a Geopolítica Bate à Porta da Escola: O Efeito Dominó da Saída dos EUA

Martinho Cumbane"

Primeira Parte

Fundada em 1945, a UNESCO tem como missão promover a paz por meio do conhecimento, da cultura e da ciência, seguindo os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Seu trabalho é especialmente relevante em regiões com carências estruturais, onde actua desde a formação de professores até a protecção de patrimônios culturais ameaçados. Nos últimos anos, porém, a organização tem sido alvo de críticas dos EUA, principalmente por sua postura em relação à Palestina e por supostamente adotar uma visão progressista que conflita com a política externa Norte Americana. Apesar disso, como destacou a diretora-geral Audrey Azoulay, a UNESCO hoje está mais fortalecida financeiramente, com contribuições voluntárias dobrando desde 2018.

A decisão dos Estados Unidos de abandonar a UNESCO pela segunda vez em menos de cinco anos não é apenas mais uma manobra diplomática. É um golpe direto nos projectos que mantêm viva a esperança em algumas das comunidades mais vulneráveis de Moçambique. Enquanto os discursos em Washington falam em "interesses nacionais" e "política externa pragmática", em Cabo Delgado, professores treinados pela UNESCO tentam reconstruir o futuro de crianças que perderam tudo para o terrorismo. Em Inhambane, mulheres que aprenderam a escrever o próprio nome aos 50 anos hoje conseguem ler receitas médicas e ajudar os filhos na escola. Na Ilha de Moçambique, mestres carpinteiros lutam contra o tempo e a erosão para preservar séculos de história. Tudo isso está agora em risco.

O problema não é apenas financeiro embora a saída dos EUA represente um corte significativo no orçamento da organização. O verdadeiro dano é o vácuo de liderança que se cria quando uma potência global desiste de influenciar positivamente as instituições multilaterais. A UNESCO não é perfeita, mas é a única plataforma global que coloca educação, cultura e ciência no centro da construção da paz. Enquanto os EUA se retiram, outros actores globais como China e Rússia avançam com sua própria visão de cooperação internacional, muitas vezes mais interessada em extrair recursos e influência política do que em empoderar comunidades locais.

 

Em Moçambique, os efeitos já são visíveis. O programa de formação de professores em zonas de conflito, essencial para garantir que uma geração inteira em Cabo Delgado não cresça sem educação, depende diretamente de financiamento internacional. Os círculos de alfabetização de adultos, que transformaram a vida de milhares de mulheres rurais, precisam de recursos para expandir. A preservação do patrimônio cultural, que sustenta não apenas a memória colectiva, mas também o turismo local, exige investimento contínuo.  Sem a UNESCO fortalecida, esses projetos perdem fôlego.

 Justamente quando Moçambique mais precisa de solidariedade global enfrentando crises climáticas, terrorismo e desigualdades profundas, o mundo desenvolvido parece cada vez mais voltado para si mesmo. Os EUA abandonam a UNESCO alegando "viés político", mas qual política é mais nobre do que garantir que uma criança em Mocímboa da Praia tenha direito a aprender? Que uma mulher em Gaza possa assinar o próprio nome? Que a Ilha de Moçambique não desapareça sob as ondas?

No final, a pergunta que fica não é sobre diplomacia, mas sobre humanidade. Quando as grandes potências tratam organizações como a UNESCO como peças descartáveis no seu jogo de poder, quem sofre são os que já vivem à margem: os pobres, os esquecidos, os que dependem de cada migalha de cooperação internacional para ter uma chance de dignidade. Moçambique merece mais do que migalhas. Merece um mundo onde educação e cultura não sejam moedas de troca, mas alicerces inegociáveis da paz. Continua próxima semana

2025/12/3