Luis Junior"
Subam no trator e fechem o bico. É esta a “solução emergencial” que nos vendem: máquinas concebidas para semear e cultivar são agora aparelhos de tortura sobre rodas, esmagando corpos e esperanças de quem não tem alternativa. São 100 tratores adaptados para transporte de passageiros nas zonas rurais, prometidos como resposta rápida a vias degradadas e falta de chapas — mas acabam por ser, na prática, a confirmação de um projecto de mobilidade falhado. Desde logo, afronta-se o Decreto n.º 11/2009, de 29 de Maio, que proíbe expressamente o transporte de pessoas em veículos destinados a carga, salvo em situações excepcionais e devidamente regulamentadas. Não existe regulamentação específica que autorize tratores a transportar passageiros. A Constituição da República (artigo 78) garante o direito à livre circulação e à mobilidade; mas subirmos num reboque de ferro retorcido, sem cinto ou protecção adequada, é rebaixar esse direito ao nível de mercadoria. Chama-se-lhes “solução provisória”, mas provisório, por estas bandas, é sinónimo de indefinido. Se olharmos para as promessas, veremos que, até ao fim de 2025, estão previstos 390 autocarros novos — quase metade movidos a gás natural. Contudo, essa meta nunca chega, porque o calendário político atropela o planeamento técnico. O que antes era “no próximo trimestre”, passou a “no próximo semestre” e, agora, é “no próximo governo”. Até lá, mantém-se a humilhação diária: agricultores, professores, vendedores ambulantes e pais de família espremem-se como sardinhas no atrelado. E o que recebemos em troca? Um antro de poeira que nos suja a roupa, invade as vias aéreas e enterra a dignidade. Recebemos discursos de burocratas que se gabam de “cobertura total” dos distritos, enquanto fotografam o ministro sorridente ao volante do trator. Não há flash que ilumine a cara de receio de quem se senta num banco de madeira, ou de quem vai atrás, sem apoio nenhum, a rezar para que o próximo solavanco não seja o último. É fácil para os responsáveis públicos desmontar a crítica: “É temporário.” É barato fazê-lo, porque não pagam autocarros, nem investem em estradas. Mas não existe transição possível quando uma proposta de “mobilidade” agrava o problema de segurança rodoviária, viola normas de trânsito e sacrifica a vida humana por um punhado de meticais que se quer poupar. O custo – e este é um dado que deveria impressionar quem aplaude estas decisões – vai muito além dos milhares de contos gastos na compra dos tratores e adaptação dos atrelados. Há custos sociais: horas perdidas em percursos lentos, acidentes evitáveis, rotas interrompidas pela chuva ou por desgastes mecânicos. Há custos de saúde: a poeira inala-se e agrava doenças respiratórias. Há custos económicos: o tempo que o camponês passa num trator podia ser dedicado a cultivar o campo, a produzir mais alimento. Quantos sacos de milho deixaram de ser semeados porque o trator gastou dias inúteis no transporte? Quantos hectares produtivos foram sacrificados para encher reboques de gente? Se o orçamento alocado ao transporte emergencial fosse canalizado para insumos e manutenção de estradas vicinais, talvez as famílias rurais tivessem acesso a mercados, escoassem produção e gerassem rendimento — em vez de ficarem reféns de chapas improvisadas. E, enquanto se aplaude o “progresso sobre rodas”, cogita se a compra de aviões para os “campinenses”. Aviões — máquinas que circulam em espaço aéreo controlado, exigem pilotos habilitados, custam milhões em manutenção e combustível. Aviões para quê? Para levar especialistas à machamba? Para fazer “aerofertilização” das nuvens? Ou para oferecer passeios a quem já vive num esqueleto de aeroporto? É espetáculo político: pinta se de azul o tecto de uma nova pista e espalham se manchetes de “iniciativa arrojada”. Esse descolamento de prioridades é assustador. Mostra-nos que, para quem decide, é mais importante a fotografia oficial do que o rendimento do agricultor; mais relevante um anúncio mediático do que o calor humano de um autocarro com teto, janelas e cinto de segurança. E, assim, seguimos num país em que a pompa substitui a eficácia, em que o teatro governa o real, em que a propaganda devora o prato de comida. A crítica aqui não é apenas política; é humanitária. É indignação organizada contra a indução deliberada de riscos. É repúdio por um sistema que privilegia a aparência sobre a substância. É recusa em aceitar que vidas sejam mercadoria barata, passível de transporte num atrelado sem protecção. Olho para aquelas pessoas empilhadas atrás do trator e vejo a ferida aberta do nosso contrato social. Vejo professores que perdem horas de aula, religiosos que chegam atrasados à missa, tecnólogos que não chegam às fazendas de demonstração, doentes que não vão a tempo ao centro de saúde. E percebo que, longe de ser “solução emergencial”, isto é um retrocesso civilizacional. É preciso reflectir: qual é a maldição que paira sobre as decisões de investimento em Moçambique? Por que razão continuamos a preferir atalhos que agravam o problema à coragem de soluções estruturais? Por que razão continua a ditar-se um “pacífico conformismo” quando a lei e a decência são atropeladas? A resposta mora no monótono som do motor que cospe fumo: há um pacto tácito entre os que mandam e o conformismo de quem aceita migalhas de respeito. Há medo de protestar: se questionares, arriscas-te a perder favor político, emprego público ou apoio social. E há indiferença: para muitos, “o campo” está longe demais dos olhos urbanos, logo a miséria rural não incomoda as elites. Mas a miséria rural também produz caos urbano. Quem não tem estradas nem transporte não vai ao mercado — e sobe a pressão inflacionária. Quem não produz comida — e não acessa mercados — acaba por recorrer a importações, fragilizando a economia. Quem não respeita a mobilidade de todos, ergue muros de exclusão que nos relegam ao atraso. Portanto, a exaustiva crítica que aqui deixo não é exercício de rancor, mas convite à responsabilidade. Quem tem a chave da ignição — seja a ignição de um trator, de um autocarro ou de um gabinete ministerial — deve perceber que, quando destrói a dignidade de um agricultor, está a minar a base do próprio desenvolvimento. Quando troca hectares produtivos por quilómetros de atrelado, está a hipotecar o futuro colectivo. O grito final é este: subam no trator se for inevitável, mas mantenham as perguntas vivas. Interroguem cada decisão, cada contrato, cada promessa que passe de gabinete para estrada de terra. Exijam o cumprimento da lei e o respeito pela Constituição. Parem de aplaudir “soluções rápidas” e comecem a exigir planeamento a longo prazo, estradas de qualidade e transporte digno. Até que esse dia chegue, a cada curva de estrada empoeirada faremos ecoar a nossa voz: “Este trator não nos cala. Este trator fere a lei e escarnece da vida. Este trator será parado pelo peso da nossa indignação.”2025/12/3
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