Luís Júnior"
Disse o Presidente: “os hospitais estão abastecidos de medicamentos.” Disse com a naturalidade de quem fala para uma audiência adormecida, anestesiada por anos de promessas recicladas. Disse com a confiança de quem acredita que repetir uma mentira em tom solene é suficiente para transformá-la em verdade. Mas do outro lado do teleponto, a realidade sangra. Na manhã seguinte ao seu discurso triunfalista, a Associação dos Profissionais de Saúde Unidos e Solidários de Moçambique (APSUSM) por via do seu presidente Anselmo Machave, quebrou o protocolo do silêncio. Desmentiu, com coragem e dados, aquilo que muitos cidadãos já sentem no osso: a saúde pública está em coma induzido por um Estado que insiste em prescrever mentiras. Nenhuma novidade para quem depende do sistema público. Uma surpresa, talvez, apenas para quem vive rodeado de assessores e circula entre inaugurações ensaiadas e hospitais maquiados para a fotografia oficial. O que a APSUSM fez foi um acto de coragem num país onde discordar do Presidente pode equivaler a assinar a própria sentença profissional. O sindicato ousou dizer o que milhares de médicos e enfermeiros sussurram nos corredores: não há medicamentos. E mais — há uma tentativa cínica de mascarar a realidade com discursos fabricados por assessores que nunca pisaram um posto de saúde sem entourage. Pacientes amontoados, profissionais exaustos, partos feitos à luz de telemóveis, enfermeiros improvisando tratamentos com o que resta. Mas, segundo o chefe de Estado, está tudo no lugar. Uma afirmação que não desinforma — desumaniza. A mentira institucional sobre a saúde não é só imoral. É letal. Quando o Estado anuncia normalidade, enquanto o povo agoniza em filas intermináveis, não se trata de falha de comunicação — trata-se de crime político. E pior: trata-se de um pacto de silêncio entre os que sabem e os que fingem não ver. Governos vêm, promessas vão. A precariedade permanece. Hospitais continuam a ser salas de espera para a morte. A gestão continua a servir interesses que não são os do povo. E discursos como o do Presidente não são declarações de liderança — são diagnósticos da decadência. A coragem da APSUSM, ao desmentir o discurso oficial, não deve ser vista como afronta, mas como um serviço público. Porque alguém precisava dizê-lo: o País está doente. E o que nos mata não é só a malária ou a cólera — é a indiferença política, é a normalização do colapso, é o Estado a prescrever palavras onde era urgente fornecer cuidados. O sistema está desenhado para falhar os mais pobres. Quem tem dinheiro foge para clínicas privadas. Quem não tem, morre lentamente, sufocado por protocolos e promessas. A saúde pública, que deveria ser o pilar da justiça social, tornou-se um cemitério administrativo. A retórica sobre “prioridade nacional” não resiste a uma visita sem escolta a qualquer centro de saúde distrital. Há perguntas que não querem calar, mas que continuam sem resposta: onde estão os medicamentos? Onde foram parar os milhões que a saúde consome em cada orçamento? Quem lucra com o caos? E por que razão o Presidente se presta a um papel tão cruel como o de negar uma evidência que grita de cada enfermaria superlotada? Mentir sobre a saúde pública é um ato de desprezo. Não é apenas cinismo — é crueldade disfarçada de gestão. E o mais perverso é que essa encenação custa vidas. Custa crianças enterradas por falta de penicilina. Custa mães perdidas por ausência de transfusões. Custa noites sem sono a quem jurou salvar vidas e não tem sequer o básico para tentar. Não é alarmismo. É a verdade nua, crua e dolorosa. O cidadão comum, aquele que não é recebido com salamaleques em centros hospitalares, vive essa verdade todos os dias. E o Presidente, se quiser mesmo entender o estado da nação, que desça do púlpito, abandone o papel e entre sozinho num hospital de Mecanhelas, de Mueda, de Marromeu. Não encontrará estatísticas — encontrará cadáveres à espera de justiça. A saúde pública moçambicana não precisa de discursos, precisa de reformas. Precisa de gestão limpa, de políticas reais, de investimento inteligente, de transparência. Precisa de um governo que se olhe no espelho e admita: falhou. E que pare de insultar a inteligência do povo com comunicados polidos. O país está cansado de comprimidos de propaganda. Cansado de ouvir que tudo está bem, quando tudo cheira a decadência. Cansado de saber que a morte pode chegar não por falta de tratamento, mas por excesso de mentira. O Presidente não deve explicações apenas ao Parlamento ou ao partido. Deve respostas às mães que enterram filhos, aos médicos que trabalham com as mãos vazias, aos doentes que rezam por um remédio que nunca chega. E, sobretudo, deve um pedido de desculpas. Por tentar fazer-nos engolir, mais uma vez, a cápsula amarga da mentira oficial. Porque no estado atual da saúde pública moçambicana, não é só o paciente que está em coma. Está em coma a decência governativa. Está em coma o compromisso com a verdade. E se não despertarmos agora, morreremos todos — uns no hospital, outros no silêncio.2025/12/3
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