Luís Júnior"
O hábito colonial é como um vício de estimação: custa largar, ainda que se saiba que faz mal a quem se ama — ou finge amar. Emmanuel Macron, o presidente francês com gosto por discursos dramáticos, apareceu mais uma vez com aquela voz de tutor sentimental, como quem segura uma criança no colo e diz: “não podemos deixá-la sozinha agora.” A criança, no caso, é um continente inteiro. E a frase, camuflada de preocupação humanitária, não é outra coisa senão a reafirmação sutil de uma obsessão histórica: a França não sabe viver sem a África. “Eles ainda precisam da nossa orientação para prosperar”, disse ele, como se um século de presença, intervenção, exploração e paternalismo não tivesse sido suficiente para perceber que o problema não é a ausência da França — é justamente o seu excesso. O velho discurso da missão civilizadora está de volta, agora em versão século XXI, com palavras polidas e intenções supostamente nobres. A França já não manda tropas para “educar” os nativos, mas envia conselheiros, instrutores, programas de “parceria estratégica”, e uma imprensa habilidosa em pintar tudo isso como colaboração mútua. No entanto, quem vê os contratos de extração mineral, as bases militares permanentes e o controle sutil das moedas percebe que a ajuda francesa tem sempre um recibo escondido debaixo da mesa. O mais curioso é que, em 2025, ainda se tem a coragem de chamar isso de solidariedade. Macron, com ares de iluminado europeu, afirma que uma retirada completa da África seria “inoportuna”. Ora, inportuna para quem? Para os povos africanos que ainda sofrem as consequências diretas de décadas de intervenção, ou para os interesses estratégicos e económicos da França, que se alimentam da instabilidade cuidadosamente dosada nas suas ex-colônias? Na prática, Paris nunca retirou verdadeiramente os dedos do tabuleiro africano. Basta olhar para o que foi (e ainda é) a Françafrique — uma teia invisível de influência onde políticos africanos são moldados, partidos financiados, e golpes tolerados desde que o regime resultante continue a cantar o hino da lealdade a Paris. Hoje, Macron fala em "responsabilidade histórica". E é aí que o cinismo atinge o seu ápice. A história — essa sim, a verdadeira — mostra-nos que a responsabilidade francesa deveria ser outra: pedir desculpas, devolver o que foi saqueado e permitir, finalmente, que os africanos trilhem seu próprio caminho sem muletas contaminadas. Mas é difícil largar a África quando ela abastece tuas fábricas, serve de mercado para os teus produtos subsidiados e alimenta o ego da tua diplomacia global. A presença francesa não é caridade; é estratégia. É política externa com luvas de veludo e punhos de ferro. E, convenhamos, Macron é apenas o último de uma linhagem que nunca aprendeu a diferença entre influência e dependência forçada. Poder-se-ia dizer que a África está a aprender a recusar esse abraço sufocante. Alguns países já expulsaram tropas francesas, outros questionam acordos monetários ou viram-se para parceiros alternativos, como a China, a Rússia, ou mesmo alianças africanas. Mas há um longo caminho até que se consiga desmontar a infraestrutura da dependência — aquela que a França ajudou a construir e insiste em manter. Talvez o mais doloroso seja constatar que há, ainda, quem ache que a presença francesa é melhor do que a ausência absoluta. Afinal, onde falta Estado, escola, estrada ou segurança, até o dominador parece remédio. Mas essa é uma armadilha cruel: não se resolve a ausência de autonomia com mais tutela. O progresso africano — se for para ser verdadeiro — terá de vir sem fórmulas importadas, sem “orientação contínua”, e sem intermediários de fala mansa. O problema com Macron não é só o que ele diz, mas o que a sua frase implica: que o continente africano é eternamente um menor de idade. E isso, além de insultuoso, é perigoso. Porque justifica intervenções, legitima interesses e mantém a narrativa onde o colonizador continua a ser herói, mesmo quando o que resta da sua presença são feridas abertas. A França precisa reaprender a sair. Precisa compreender que o verdadeiro gesto de solidariedade não é persistir em ficar, mas preparar-se para uma partida honesta, deixando para trás não soldados, mas condições para que se reconstruam soberanias de verdade. E que esse apoio — se for bem-vindo — venha sem a arrogância típica de quem acredita que o mundo gira em torno de Paris. Macron, ao dizer que a França tem um papel a cumprir, revela mais sobre si do que sobre a África. É o velho complexo de Napoleão, disfarçado de boa vontade. A ideia de que o mundo precisa da França mais do que a França precisa do mundo. Acreditam-se tão indispensáveis quanto insubstituíveis. Mas não são. A África já demonstrou, com todas as suas dores e glórias, que sabe caminhar. O problema é que muitas vezes lhe colocaram correntes nos pés, enquanto diziam que era por seu bem. A nova geração africana, conectada, crítica e consciente, não quer mais tutela. Quer independência de verdade. E, para isso, talvez o melhor que a França possa fazer seja aprender a recuar — não com ressentimento, mas com responsabilidade. Quem sabe, um dia, Macron e os seus sucessores perceberão que a única “orientação” que ainda podem oferecer é o exemplo: como reconhecer os próprios erros e sair de cena sem tentar roubar os aplausos finais. O continente africano não precisa de mais “orientação”, muito menos da França. Precisa de respeito, reparações e liberdade para errar e acertar por conta própria. Macron talvez devesse olhar menos para a África e mais para o espelho da história, onde está gravado o papel que a sua pátria teve em acorrentar o futuro de milhões — e que, ao que parece, ainda não pretende soltar.2025/12/3
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