A cultura do groove: álcool como passaporte para a juventude perdida

Luís Júnior"

Noite em Maputo. Sexta-feira, 20h. O bairro começa a pulsar. As colunas roncam amapiano como se convocassem demónios, e a juventude responde com copos de gin falsificado na mão. É groove, dizem. É só groove. Mas ninguém se engane: o que começa como batida termina como anestesia social. E a juventude está a morrer, gota a gota, gole a gole, como se fosse natural. O groove virou religião e o álcool, o baptismo obrigatório. Não interessa se tens 13 ou 18 anos. Se não bebes, não pertences. És “careta”, “quadrado”, “sem vibe”. O bullying começa ali, no primeiro copo recusado. Daí para frente, ou te adaptas ou és empurrado para as margens. E adaptam-se rápido: a garrafa gira como oferenda e a vergonha é calada com um gole fundo. No início, o corpo recusa. Depois acostuma. Depois exige. E ninguém fala disso. Ninguém quer falar. Todos sabem que a juventude está a beber-se até à estupidez. Mas fingimos que é normal. O bairro todo lotado de meninas de 15 anos a dançar em cima de mesas com garrafas nas mãos, filmadas por putos que não sabem o que é limite, nem futuro. Cada vídeo vira story, cada ressaca vira piada. E os adultos? Os adultos calam-se. Muitos estão ocupados demais a sobreviver. Outros simplesmente desistiram de educar. Há quem até aplaude: “Deixa-os, estão só a curtir a juventude”. Mas não é curtir. É afogar. Afogar traumas, pobreza, pais ausentes, educação ausente, professores que dormem na sala, políticos que só aparecem para pedir voto. O groove é mais que festa: é o único lugar onde esses jovens sentem que têm algum poder. Porque no resto da semana, são invisíveis. Ninguém os escuta. Ninguém os leva a sério. Então, ali no meio da batida e da bebida, eles gritam o que não conseguem dizer de dia. A primeira vez que vi um miúdo a desmaiar de tanto beber foi no bairro. Estava ali deitado no chão, os olhos virados, tremores no corpo. Tinha 12 anos. Alguém filmava. Alguém ria. Ninguém socorreu. Deram-lhe água, abanaram-lhe o rosto, depois largaram-no ali, como um saco velho. A festa seguiu. E a pista encheu-se de novo. Esse miúdo talvez esteja morto. Talvez esteja agora num centro de reabilitação, se é que isso existe por aqui. Mas ninguém sabe. Ninguém quer saber. A juventude em Moçambique está entregue. Entregue ao álcool, ao tédio, às redes sociais e ao total descaso institucional. E o álcool não é um acidente. É instrumento. Um modo eficaz de manter os jovens ocupados enquanto o país continua atolado em promessas podres. Enquanto os corruptos fazem desaparecer biliões, os putos fazem desaparecer a lucidez, garrafa após garrafa. Os bares vendem sem perguntar idade. Os tios da barraca só querem saber se tens dinheiro. Há gin e vodka que parece “desinfetante”:. O que importa é circular produto. Mesmo que o produto esteja a matar. E matando está: fígados destruídos antes dos 20, AVCs aos 30, depressão disfarçada de ressaca. Mas a estatística oficial continua a dizer: “juventude é a esperança da nação”. Esperança de quê, quando tudo o que se oferece é groove e bebidas espirituosas? A culpa não é só do álcool. É de um sistema que desistiu de oferecer caminhos. As escolas são prisões sem grades, os bairros não têm centros juvenis, os pais estão ausentes (porque precisam estar), e os poucos que tentam alertar são chamados de antiquados. Os governantes limitam-se a reuniões de gabinete, produzindo slogans patéticos como “juventude consciente, país forte”, enquanto do lado de cá, a juventude desmaia na valeta. Há uma indiferença colectiva que chega a ser assustadora e criminosa. As igrejas fingem que é problema dos outros. Os professores acham que é uma fase. A polícia só aparece para cobrar refresco. E os médicos atendem as consequências como se fossem acidentes inevitáveis. Ninguém ataca o centro do problema. Porque admitir que estamos a criar uma geração de alcoólatras é admitir que falhámos — como país, como sociedade, como seres humanos. É preciso coragem para dizer: groove está a matar. Está a fabricar zombies com Facebook. Putos que só sabem viver com o copo na mão. Meninas que trocam corpo por status. Rapazes que vivem no modo ressaca. Não há futuro onde o presente já está entorpecido. E o mais trágico: os próprios jovens não se vêm como vítimas. Acham que estão no controlo. Que é só curtição. Que “todo mundo faz”. É urgente parar de fingir. Groove não é tradição. É sintoma. Sintoma de um país que não cuida da sua juventude. Que os abandona à sua própria sorte e depois se espanta com os resultados. Não é o álcool que está a matar. Somos nós, ao não fazer nada. Ao deixá-los ali, à deriva, a celebrar o vazio com batida e bebida. Enquanto continuarmos a romantizar esta cultura como se fosse apenas diversão, vamos continuar a empurrar os nossos jovens para o abismo. E o pior é que o abismo não faz barulho. Só engole. Engole sonhos, engole saúde, engole vidas inteiras — e tudo começa com um copo numa sexta-feira qualquer.

2025/12/3