Edna Tuaria Aníbal"
José Mucavele é mais do que um músico. É um dos guardiões da alma moçambicana, um artista cuja voz atravessou gerações, sempre carregando a ternura de um pai e a consciência de um homem enraizado no seu povo. Com uma carreira discreta, mas de impacto profundo, ele mostrou que não é preciso gravar dezenas de discos para marcar a história. Bastou-lhe um gesto musical a sua Balada para Minhas Filhas, para se tornar eterno. Esta canção, escrita em língua nacional, ultrapassou fronteiras e chegou a ser adoptada pela UNICEF como hino simbólico de paz e de esperança. Mas a sua verdadeira grandeza está na forma como nos obriga a olhar para dentro, a reflectir sobre quem somos e para onde vamos. A Balada para Minhas Filhas é, à primeira vista, um canto de amor paternal. Mas, quando escutada com atenção, é também um manual de vida. Mucavele aconselha as filhas a cuidarem da vida como quem cultiva flores, a protegerem-se dos perigos que rondam o mundo, a caminharem com dignidade e verdade. É uma música que parece simples, mas guarda camadas de profundidade: fala de liberdade, mas não da liberdade vazia que se grita nos discursos; fala da liberdade verdadeira, aquela que nasce do enraizamento na identidade, na família e na natureza. Cada verso é um abraço, mas também um apelo à responsabilidade. E é aqui que a canção encontra o nosso tempo. Olho para a juventude moçambicana de hoje e não deixo de sentir um certo descompasso. Muitos correm atrás de sonhos importados, aprendem a falar línguas estrangeiras, mas já não sabem construir frases na língua da sua terra. Crescem com acesso a novas tecnologias, mas sem conhecer a história dos seus avós. A Balada para Minhas Filhas soa, então, como uma advertência: se não cultivarmos as nossas próprias flores, se não cuidarmos das nossas raízes, viveremos de empréstimos de palavras, de culturas, de identidades que não são nossas. Não se trata de rejeitar o que vem de fora. Trata-se de aprender a não perder o que é nosso. Outros povos gritam as suas culturas com orgulho, enquanto nós muitas vezes nos calamos, como se tivéssemos vergonha do que herdámos. A canção de Mucavele mostra que o verdadeiro orgulho nasce no lar, na família, na língua, nos gestos pequenos que revelam quem somos. É uma canção que, ao mesmo tempo, consola e inquieta: consola porque nos lembra que ainda podemos transmitir às próximas gerações valores de amor e respeito; inquieta porque nos mostra o risco real de estarmos a perder esse fio de continuidade. Não é por acaso que outros artistas e escritores moçambicanos caminharam pelo mesmo trilho. António Marcos (Maengane), com a sua marrabenta, também cantava sobre a vida simples, sobre a necessidade de manter a dignidade e a moralidade no dia-a-dia. Do mesmo modo, Mia Couto escreveu inúmeras vezes que uma nação que perde a sua língua perde a sua alma. A Balada para Minhas Filhas encontra eco nessas vozes: todas nos lembram que não podemos deixar a herança cultural morrer por descuido ou indiferença. A juventude de hoje precisa desta música não como peça de museu, mas como guia de vida. Porque a Balada para Minhas Filhas não é apenas uma canção de um pai para as suas filhas. É um canto de um povo para os seus descendentes. É uma promessa de que, mesmo num mundo cheio de perigos e distrações, ainda é possível viver com verdade, amor e consciência. E eu, ao escutá-la, sinto orgulho de ser africana. Orgulho que não nasce da comparação com os outros, mas da certeza de que a nossa liberdade de expressão só será real quando for dita na nossa própria língua. Se a deixarmos morrer, levaremos connosco a história do nosso povo. Mas se a preservarmos, deixaremos aos que virão depois de nós um tesouro inestimável: a memória viva de quem somos. A Balada para Minhas Filhas é mais do que uma música. É um apelo. É o silêncio que grita por nós. Cabe-nos decidir se queremos continuar calados ou se temos coragem de cantar com ela, para que as flores do nosso jardim nunca deixem de florescer.2025/12/3
Copyright Jornal Preto e Branco Todos Direitos Resevados . 2025
Website Feito Por Déleo Cambula