Salvemos a nossa música, salvemos a nossa cultura

Alípio Freeman"

A música, como primeira das sete artes, é uma das expressões mais profundas da identidade de um povo. Em Moçambique, ela sempre foi mais do que arte: é instrumento de resistência, espelho de vivências, meio de comunicação espiritual e social. Mas a música moçambicana atravessa hoje uma fase crítica. Vive-se um tempo de descaracterização, de invasão sonora estrangeira, de desvalorização do artista e de silêncio institucional por parte de quem devia proteger e promover a nossa cultura, ou seja, uma descaracterização cultural em todos seus substratos. A música ligeira moçambicana, nasceu da fusão entre ritmos tradicionais e influências exteriores, facto que contribuiu na construção rítmica e identitária do que hoje chamamos marrabenta, considerada a espinha dorsal da musical em Moçambique. Surgida entre os anos 1930 e 1940 nos subúrbios de Lourenço Marques (atual Maputo), particularmente nos bairros de Mafalala, Xipamanine e Chamanculo, a marrabenta era, desde o início, a voz das comunidades negras que resistiam culturalmente à opressão colonial. A palavra “marrabenta” vem do português “rebentar”, numa alusão às cordas das guitarras que, por serem improvisadas com fios de pesca ou cabos de travões de bicicleta, arrebentavam com frequência. Era um som nascido da necessidade e da criatividade. A marrabenta combinava ritmos tradicionais como o xigubo, o ngoma, o mapiko e os cânticos rituais com influências de músicas europeias como o fado, o tango, o bolero e a rumba, trazidos pelas rádios coloniais e por marinheiros de passagem. Esse novo ritmo cresceu com base em instrumentos simples: a viola, o baixo improvisado, os tambores locais e, sobretudo, o corpo. Dançava-se com os pés descalços no chão de terra batida e a música era feita com a alma. A marrabenta era crítica social, era romance, era festa e era dor. Nela se dizia o que não se podia gritar. Era o meio pelo qual os bairros se expressavam e se organizavam culturalmente. Grandes nomes surgiram desse contexto. Fany Mpfumo, o “rei da marrabenta”, eternizou canções como Loko ni kumbuka Jorgina e A vasati va lomu. A sua voz rasgada e a sua guitarra enérgica transformaram-no num símbolo do orgulho musical moçambicano. Eugénio Mucavel, com seu estilo melódico e cadenciado, levou a marrabenta a novas sonoridades. Pedro Langa, com a sua versatilidade, mostrou que a marrabenta podia conversar com outros géneros sem perder a essência. Zeca Murasse, Gabar Mabote, Alexandre Langa e tantos outros foram responsáveis por uma explosão artística sem precedentes nas décadas de 1970 a 1990. Não havia semana sem concertos ao vivo, e embora a remuneração fosse quase simbólica, a entrega era total. A música era paixão, era missão. Mas hoje, essa chama apaga-se. Muitos desses artistas morreram em condições degradantes. Morreu-se na miséria, no esquecimento, sem honras de Estado, sem pensões de mérito, sem sequer um espaço digno onde os seus restos repousassem com respeito. O caso de Elsa Mangue é uma ferida ainda aberta: após uma vida dedicada à cultura nacional, o seu corpo teve que ser trasladado para a sua província de origem sem dignidade, num episódio marcado pela desorganização e desrespeito. E extenso o leque de artistas que deram suas vidas pela cultura e musica moçambicana, deixando um legado imensurável, mas como ee de praxe nestas bandas, as recompensas nunca chegam e mais do que o abandono estrutural e o seu acervo que morre com eles. Seus filhos sobrevivem no esquecimento, seus arquivos deterioram-se em gavetas esquecidas, e parte da história moçambicana morre silenciosamente com eles. Hoje, a marrabenta, que um dia ergueu bairros e uniu gerações, quase não se ouve. Foi substituída por ritmos importados, embalados por batidas electrónicas produzidas em programas de computador. A essência da música foi esvaziada. Canta-se qualquer coisa, de qualquer maneira. Não há estudo, não há técnica, não há compromisso com a perenidade da arte. Os instrumentos foram substituídos por sons digitais, e o calor do tambor foi trocado pela engenhosidade de um computador. Já não há alma, já não há corpo e nem precisas conhecer a base da música para ser considerado musico sem se importar pela diferença entre cantante e musico no sentido estrito do termo. A culpa não é apenas dos músicos. É sobretudo do Estado, que falhou redondamente na protecção da sua cultura. O Ministério da Cultura transformou-se num órgão decorativo, sem política clara, sem presença efectiva, sem apoio estruturado aos artistas. Não há programas de capacitação musical. Não há incentivos à produção autêntica. Não há controlo sobre os conteúdos que invadem diariamente as rádios e televisões, muitas vezes promovendo uma cultura alheia à realidade moçambicana. A falta de estratégia cultural permite que a música nacional seja engolida por modas globais, desprovida de identidade e de valor artístico. Em contraste, o mundo celebra ainda hoje músicos que viveram há séculos. Johann Sebastian Bach, com suas fugas e corais, é tocado em salas de concerto em todo o mundo. Ludwig van Beethoven, mesmo com sua surdez, compôs a Nona Sinfonia, um hino à humanidade. Niccolò Paganini, o “diabo do violino”, assombrou o mundo com sua técnica, sendo ainda hoje estudado nas maiores escolas de música. Esses artistas foram reconhecidos, valorizados e protegidos pelos seus contextos. Tinham Estados que, mesmo em tempos difíceis, compreendiam que a arte não é um luxo, mas um pilar civilizacional. Moçambique precisa urgentemente de resgatar a sua música. E isso começa por reconhecer que não se pode construir um país sem cultura. Algumas medidas urgentes devem ser adoptadas: a criação de um Arquivo Nacional de Música, a introdução da história da música moçambicana nos currículos escolares, a obrigatoriedade de rádios e TVs públicas promoverem música nacional de qualidade, a valorização dos artistas com pensões e apoios, a recuperação e digitalização dos acervos dos músicos falecidos, e o financiamento público para projectos que resgatem e inovem sobre ritmos tradicionais como a marrabenta, o tufo, a timbila e o xigubo. Ainda é possível reanimar a nossa música ligeira, dar-lhe vigor, identidade e projecção internacional. Mas é preciso vontade política, é preciso investimento sério, e sobretudo, é preciso sensibilidade cultural. Salvemos a nossa música. Salvemos a nossa cultura. Porque se não o fizermos agora, amanhã já não teremos mais nada a salvar.

2025/12/3