
Alípio Freeman "
A música moçambicana contemporânea é o espelho de uma nação que perdeu o compasso da própria alma. É a banda sonora de um país que, depois de conquistar a independência política, cedeu lentamente à dependência cultural, assistindo impávido à erosão dos seus próprios alicerces sonoros. Hoje, entre o ruído das plataformas digitais e a febre do mainstream, a música nacional tornou-se sintoma de um vazio mais profundo: o colapso da moçambicanidade como consciência viva.
O som moçambicano, que um dia foi instrumento de resistência, transformou-se num produto globalizado, padronizado e desprovido de enraizamento. O que se escuta nas rádios, nas festas e nas redes sociais é, em grande parte, uma cópia — e das piores, porque desprovida de contexto. Cantamos em línguas que não sentimos, dançamos ritmos que não compreendemos e celebramos símbolos que não nos pertencem. A arte, que devia ser afirmação, virou reflexo.
Durante o colonialismo, o poder estrangeiro combateu ferozmente os nossos tambores porque sabia que neles habitava o espírito da rebeldia. Hoje, ninguém precisa de proibir o tambor — nós mesmos o silenciamos, fascinados pela estética do outro. O colonizador já não vem com fardas nem catecismos; vem com beats, likes e contratos de produção. E nós, ávidos por aceitação, trocamos o som da terra pelo eco da conveniência.
A música contemporânea denuncia, ainda que sem querer, o fracasso do projeto cultural pós-independência. Moçambique libertou-se do domínio político, mas nunca construiu uma política cultural sólida. As instituições reduziram a cultura a festivais protocolares, e as escolas deixaram de ensinar a música como memória. O artista foi abandonado à sorte, e o povo, empurrado para o consumo. O resultado é uma indústria sem estrutura, uma arte sem profundidade e uma juventude sem referência.
A globalização, com toda a sua promessa de interligação, trouxe também a diluição. Nela, o músico moçambicano tenta competir com o mundo inteiro, mas sem meios, sem apoio e, pior, sem identidade. O mercado exige uniformidade, e o artista adapta-se. Surge assim uma geração de criadores que, para existir, precisa primeiro de apagar o que é. A marabenta, outrora símbolo de autenticidade, foi relegada a peça decorativa; o xigubo, reduzido a espetáculo folclórico; e a timbila, confinada aos museus da cultura, onde ninguém a ouve — apenas a fotografa.
A música moçambicana tornou-se o campo de batalha onde se trava a guerra entre a memória e o esquecimento. De um lado, os poucos que ainda procuram resgatar a essência nacional, misturando o moderno ao ancestral; do outro, a multidão que confunde inovação com imitação, e liberdade com submissão estética. O perigo é que, nesta disputa silenciosa, o país esteja a perder o seu idioma emocional — aquele que o fazia diferente.
As mortes sucessivas dos pioneiros da música ligeira revelam mais do que tragédias pessoais: são metáforas do colapso cultural de Moçambique. Eles morreram pobres, esquecidos, traídos por um sistema que nunca os compreendeu. Morreram com a mesma dignidade com que cantaram, mas sem a gratidão de um povo que preferiu importar ídolos a reconhecer os seus. Cada um deles foi uma biblioteca que ardeu, um arquivo que se perdeu, uma parte da nossa história que desapareceu sem registro.
É impossível compreender o estado da música sem compreender o estado da nação. Somos um povo fragmentado, culturalmente órfão, sempre à procura de um espelho onde nos possamos ver sem vergonha. E a música, sendo o reflexo mais sensível, revela essa confusão de forma brutal. Canta-se o luxo num país pobre, a ostentação num país desigual, o amor importado num país que desaprendeu de amar a si próprio.
Mas nem tudo está perdido. Há nas periferias, nas pequenas rádios comunitárias, nos estúdios improvisados e nos jovens que experimentam com coragem, uma chama de recomeço. São vozes que tentam reconstruir o som moçambicano com consciência histórica, com sentido de pertença, com o orgulho de ser quem se é. Eles entendem que a modernidade não é negação do passado, mas o seu prolongamento criativo.
A verdadeira moçambicanidade musical não nascerá da rejeição ao estrangeiro, mas da capacidade de domesticar o global, de transformá-lo em algo nosso. De fazer com que o tambor dialogue com o beat, sem se submeter a ele. De garantir que, mesmo quando a batida é digital, o pulso seja africano.
A música contemporânea é, portanto, o espelho da encruzilhada moçambicana: entre o que fomos e o que fingimos ser; entre o que poderíamos criar e o que preferimos copiar. Ela é a confissão sonora de um país que dança, mas não escuta; que canta, mas não entende o que diz.
O desafio da moçambicanidade não é apenas musical — é civilizacional. Ou reencontramos o som da terra, ou seremos apenas o eco do mundo. Porque quando a música perde a alma, o país perde a voz. E um povo sem voz é um povo condenado a ser espectador da sua própria extinção.
E é por isso que falar da música, hoje, é falar da sobrevivência da nossa identidade. É um apelo à escuta, não da rádio, mas de nós mesmos. Porque talvez o futuro de Moçambique dependa, afinal, de uma simples decisão: voltar a ouvir o tambor.
2025/12/3
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