Alipio Freeman"
Comparar o ensino do Mandarim com a introdução da Saúde Pública nas escolas moçambicanas pode parecer, à primeira vista, um exercício surreal, quase um capricho retórico. No entanto, quando o Ministério da Educação aparece como protagonista de propostas que depois recua (ou finge recuar), ou quando somos confrontados com fake news que abalam ainda mais um sector já fracturado, a metáfora ganha força. Se é verdade ou não que se pretende implementar o ensino do Mandarim de forma obrigatória, já pouco importa, a dúvida que se instala já cumpre a função de desviar o olhar do essencial: como estamos a educar nossas crianças sobre aquilo que mais directamente impacta suas vidas, a saúde?
Moçambique é um dos países com piores indicadores de cobertura sanitária no mundo, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, num universo de um medico para dois mil pessoas, com problemas de equipamentos, com exames básicos que levam meses para ser feitos levando varias pessoas a morte sem no mínimo saber do que padecem. O casamento educação – saúde parece ficção quando o amor parece presente e desejável. A malária continua a ser uma das principais causas de morte, a cólera reaparece ciclicamente como se fosse um velho conhecido, e doenças evitáveis seguem ceifando vidas em pleno século XXI. Numa realidade assim, é injustificável que as crianças terminem a escolaridade básica sem saber, por exemplo, que a cólera é causada por uma bactéria chamada Vibrio cholerae ou que a malária é transmitida por mosquitos do género Anopheles.
Ensinar Saúde Pública desde a tenra idade é mais do que uma questão de currículo — é um ato de sobrevivência colectiva. É urgente que as escolas públicas se transformem em espaços de formação para a vida real, onde se aprenda a reconhecer os sintomas de doenças, a importância da higiene, da nutrição e da vacinação. A ausência desse tipo de ensino cria adultos vulneráveis, facilmente enganados, que não sabem exigir seus direitos sanitários ou reconhecer práticas de risco.
A China, que hoje exporta médicos, medicamentos e tecnologia hospitalar para o mundo, construiu muito do seu avanço médico a partir de investimentos massivos em educação sanitária de base. Crianças aprendem, desde cedo, os fundamentos da prevenção, o funcionamento do corpo humano, e os valores da medicina tradicional aliados ao rigor científico. Mais do que reduzir doenças, isso inspira vocações: jovens passam a ver a medicina como uma carreira nobre e possível. Por que não fazemos o mesmo?
Não é justo que estejamos a importar o Mandarim antes de sequer consolidar o ensino das nossas línguas nacionais. A língua é uma ferramenta de comunicação, mas também de dominação. Ao optar por ensinar uma língua estrangeira motivada por interesses económicos e geopolíticos, sem um debate profundo e transparente, o Estado moçambicano compromete sua soberania cultural e educativa.
Se os chineses são tão avançados em medicina, por que não propõem apoio à reforma dos nossos currículos com foco em saúde pública, em vez de priorizarem a expansão da sua língua? A resposta talvez esteja no jogo geopolítico que se desenrola diante dos nossos olhos. A China, fiel ao seu papel nas guerras económicas do século XXI, busca expandir sua influência através de soft power, e a educação é uma das suas armas mais eficazes. A alienação cultural já começou, e está a ser alimentada pela apatia cúmplice de um Estado que prefere estender a mão em vez de construir os próprios alicerces.
É preciso romper com esse ciclo. A saúde sexual e reprodutiva deve ser ensinada sem tabus, com responsabilidade e com a ciência como guia. Raparigas e rapazes devem crescer conscientes sobre seus corpos, seus direitos e suas escolhas. Um bom programa educativo não ensina apenas o que pensar, mas como pensar, e isso inclui ensinar a fazer, a cuidar e a transformar.
O fosso entre médicos e população cresce quando o povo não entende o que se passa com seu próprio corpo. Educação em saúde é também democracia sanitária. Não se pode esperar que o povo participe das decisões se não lhe é dado o saber necessário.
Se vamos importar algo da China, que seja o exemplo do investimento na formação em saúde e ciência. Que seja o espírito da pesquisa, da disciplina e da valorização do conhecimento como forma de emancipação. O Mandarim pode esperar.
Afinal, de que nos serve falar a língua de Confúcio se continuamos a morrer por ignorar as causas da cólera?
2025/12/3
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