
Alípio Freeman "
Insurgência em Moçambique: porquê Mocímboa Desde 2017, o norte de Moçambique, particularmente a província de Cabo Delgado, tem sido palco de uma tragédia prolongada que o país e o mundo parecem ter normalizado. A insurgência, nascida nas sombras da exclusão social e alimentada por interesses económicos obscuros, mergulhou a região numa espiral de dor e desorganização. Em cada aldeia queimada, em cada corpo abandonado, há o retrato de um Estado que perdeu o controlo e de uma sociedade empurrada para o abismo. Os primeiros ataques em Mocímboa da Praia foram vistos como episódios isolados, actos de criminosos comuns. Mas depressa se percebeu que por detrás das balas havia algo mais profundo: uma combinação de desespero, fanatismo e manipulação económica. E a pergunta impõe-se: porquê Mocímboa? Porque aquele distrito, e não outro? A resposta talvez esteja na sua posição estratégica e no subsolo cobiçado, rico em gás natural, rubis, madeira e outras riquezas que, ironicamente, nunca beneficiaram os seus habitantes. Relatórios da Amnistia Internacional (2021) e das Nações Unidas (2022) descrevem uma crise humanitária de proporções devastadoras. Centenas de milhares de deslocados, aldeias inteiras destruídas, e uma juventude sem horizonte. As comunidades, já fragilizadas pela pobreza, tornaram-se presas fáceis para recrutamentos forçados, enquanto as forças do Estado, frequentemente acusadas de abusos, perdiam a confiança das populações. A insurgência floresceu no vazio deixado pela ausência de um Estado social. A juventude de Cabo Delgado, sem acesso à educação, ao emprego e à terra, viu na violência uma falsa alternativa à miséria. Entretanto, elites políticas e empresariais acumularam fortunas ligadas aos megaprojectos de gás e à exploração de recursos naturais. É um paradoxo cruel: o mesmo solo que gera riqueza gera também sofrimento. O tráfico de droga, denunciado em relatórios do Instituto de Estudos de Segurança (ISS, 2020), encontrou em Cabo Delgado uma rota perfeita. Mocímboa, com o seu porto natural e fronteiras frágeis, tornou-se ponto de passagem de heroína e metanfetaminas, movimentando milhões de dólares por redes ligadas a figuras poderosas. Enquanto isso, o cidadão comum foge para o mato, sem saber quem é o inimigo: o terrorista, o soldado, ou a fome. A comunidade internacional reagiu com frieza. Durante anos, as mortes foram apenas estatísticas em relatórios diplomáticos. Só quando o gás de Afungi esteve em risco surgiram respostas militares coordenadas. Tropas estrangeiras chegaram, não para salvar pessoas, mas para proteger investimentos. A vida humana, mais uma vez, ficou em segundo plano. O tecido social de Cabo Delgado rasgou-se. Famílias desfeitas, crianças sem escola, mulheres vítimas de violações, homens executados ou forçados a juntar-se aos insurgentes. A pobreza aprofunda-se. O trauma colectivo alastra-se. A guerra já não é apenas física, é moral. Os deslocados, espalhados por Nampula, Niassa e Zambézia, sobrevivem de esmolas e esperanças vãs, enquanto discursos oficiais falam em “reconstrução” e “normalização”. Mas a normalidade não volta onde há medo. Mocímboa, Palma, Macomia, Mueda — nomes que se tornaram sinónimos de sofrimento — continuam a ser feridas abertas na consciência nacional. O Estado fala em vitória, mas o povo fala em ausência. As promessas de desenvolvimento nunca chegam, e quando chegam, são distribuídas em silêncio, entre os que mandam e os que enriquecem. Porquê Mocímboa? Porque é ali que se cruzam as rotas da ganância. Porque é ali que o poder e a impunidade se encontram. Porque é ali que a fragilidade do Estado moçambicano se torna visível, nua e crua. Mocímboa é o espelho de um país dividido entre o luxo e o luto, entre a riqueza subterrânea e a pobreza à superfície. Enquanto alguns celebram contratos e acordos, o povo continua nas matas, sem pão nem abrigo. E quando se fala em paz, fala-se apenas de silêncio — o silêncio das armas, mas não o da dor. A insurgência é mais do que uma guerra, é o sintoma de uma nação ferida, traída por dentro e esquecida por fora. E talvez a pergunta deva ir além de Mocímboa: porquê Moçambique? Por que o sofrimento do nosso povo continua a ser um bom negócio para alguns e uma indiferença para tantos outros?
2025/12/3
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