Guerra no Mercado Estrela: Quando a Policia Usa da Força para Resolver Assuntos Pessoais de seus Dirigentes

Alípio Freeman"

A recente e lamentável invasão do Mercado Estrela, na cidade de Maputo, por parte da Polícia da República de Moçambique (PRM), representa um retrato sombrio da relação que se estabelece entre as forças de defesa e segurança e a população civil. Sob o pretexto de recuperar um telefone celular roubado a um comandante, mobilizou-se um aparato policial que nem se vê quando há roubos ou sequestros com direito a quase todas as categorias operacionais da PRM, transformando uma zona comercial e residencial num verdadeiro campo de guerra com um inimigo desconhecido. O que se viu, de forma estarrecedora, foi uma demonstração de força vergonhosa, abusiva e sem precedentes recentes, não por sua intensidade em si, mas por aquilo que ela revela: um contigente fortemente determinado a pisar tudo e todos por conta de um celular, desprezando os direitos dos cidadãos, violando de forma sistemática e impune, sobretudo quando os interesses atingidos dizem respeito à um individuo. Não é a primeira vez que o Mercado Estrela é palco de uma operação violenta, motivada pela perda de bens de figuras com poder político ou institucional. Contudo, a violência despropositada empregue nestas acções, incluindo o uso indiscriminado de gás lacrimogéneo, em plena zona habitacional e próxima de instituições de ensino, expõe uma falha grave de inteligência, profissionalismo e empatia por parte dos agentes envolvidos, uma brutalidade inexplicável. O silêncio cúmplice da Procuradoria-Geral da República e de outras instituições que deviam ser o garante do Estado de Direito lança uma mancha preocupante sobre os compromissos da nação com os princípios democráticos e os direitos humanos. O povo moçambicano, especialmente no período pós-eleitoral, tem demonstrado maior consciência cívica e capacidade de relacionar os factos. E tem, com razão, cobrado caro pelo abuso dos seus direitos constitucionais. É importante reconhecer que os mercados informais como o Estrela não são um fenómeno exclusivamente moçambicano. Estão presentes em quase todas as economias do mundo, inclusive nas mais desenvolvidas. Em Moçambique, estes espaços são um dos poucos amortecedores da crise de desemprego crónico que aflige o país. São ali geradas milhares de oportunidades de subsistência que, se não existissem, lançariam o país num abismo social ainda maior. Ignorar este facto, ou tratar os seus intervenientes como marginais por defeito, é um sinal claro da alienação das autoridades face à realidade do povo. Não se nega que possam existir práticas ilícitas em mercados informais. Mas é dever do Estado agir com inteligência e profissionalismo, respeitando sempre os limites da lei. Não é aceitável que a investigação de um furto se transforme numa acção punitiva colectiva, que culmina com a apreensão de telefones de cidadãos inocentes, com a destruição de bens, e com a propagação de medo num espaço onde se deveria promover paz, segurança e desenvolvimento. O mais preocupante, porém, é que a operação no Mercado Estrela parece não ter tido como objectivo a justiça, mas sim a vingança. E vingança, quando praticada por agentes do Estado, é a antítese da legalidade. Trata-se de um uso desproporcional e politicamente motivado de recursos bélicos, e parece que o facto destes vendedores mostrarem sem medo seu apoio a oposição, não agrada o regime que os vêem de forma clara como inimigos, uma atitude de ditaduras que buscam sempre inimigos naqueles que não concordam com sua actuação. Não pode ser normal que se use tanta forca que muitos e meios que custam milhares de meticais aos cofres públicos, para responder a um problema pessoal. Isso evidencia não apenas a falência ética dentro das FDSs, mas também a falta de controlo e de responsabilização sobre os seus membros. É legítimo questionar: se o bem furtado não pertencesse a uma figura da elite, teria havido tal mobilização? E mais: se a polícia tem consciência de que o mercado funciona como entreposto de bens furtados, por que não actua de forma sistemática, preventiva, legal e com provas? Por que só age quando os interesses dos poderosos são afectados? A imagem que se transmite à sociedade é a de uma força policial que serve à elite e não ao povo. E isso mina perigosamente os esforços de reconstrução da harmonia social, tão necessária num contexto político ainda fragilizado. Pior ainda, normaliza a brutalidade e a impunidade como instrumentos de governação. Não há dúvida de que Moçambique precisa urgentemente de reformas profundas no sector da segurança. Reformas que passem por formação humanista, pelo reforço da inteligência investigativa, pela punição exemplar de excessos e pelo fortalecimento das instituições fiscalizadoras. A marginalização contínua dos mercados informais, sem qualquer alternativa de inclusão socioeconómica, revela não só má-fé, mas também incompetência governativa. Enquanto persistir essa mentalidade repressiva e selectiva, o país continuará a caminhar na direcção oposta à democracia. E o povo, cada vez mais informado e consciente, já não se cala. O silêncio institucional diante de violações gritantes como a do Mercado Estrela é, também ele, uma escolha política, e o povo já percebeu isso. Os governantes precisam entender que a força bruta não apaga a dor nem a memória coletiva. Pelo contrário, a intensifica. E quanto mais tempo se permitir que essas operações se repitam sem responsabilização, mais se cavará o fosso entre Estado e cidadão. Que esta ação lamentável sirva, ao menos, de alerta para que se repense urgentemente o papel e a atuação da polícia num Estado que se diz democrático. Até quando veremos mercados cercados como se fossem zonas de guerra, por causa de interesses individuais? Até quando os inocentes pagarão com o seu sossego e segurança pelas falhas sistémicas de um Estado que escolheu o caminho da repressão em vez da justiça? É tempo de dizer basta. O povo moçambicano merece mais, merece respeito, paz e um Estado que o defenda, e não que o ataque.

2025/12/3