Cabo Delgado: Entre a Violência Armada e a Armadilha dos Recursos Naturais

Alípio Freeman"

Desde Outubro de 2017, Moçambique assiste ao desenrolar de um conflito armado que tem assolado particularmente a província de Cabo Delgado, no norte do país. O que começou como uma série de ataques aparentemente desorganizados a postos policiais e aldeias transformou-se numa insurgência prolongada, violenta e altamente destrutiva, protagonizada por um grupo armado conhecido localmente como “Al-Shabab” (sem relação directa com o grupo homónimo da Somália). Este grupo, posteriormente associado ao Estado Islâmico da África Central (ISCAP), impôs uma nova realidade de terror em comunidades vulneráveis, mergulhando a região num dos maiores desastres humanitários da história recente de Moçambique.

Desde o início da insurgência, mais de 5.000 pessoas perderam a vida em consequência directa dos confrontos armados, massacres, emboscadas e destruição de aldeias inteiras. Segundo dados das Nações Unidas, cerca de 1 milhão de pessoas foram deslocadas internamente, obrigadas a fugir das suas casas para escapar da violência, deixando para trás lavouras, famílias e identidades culturais. A crise humanitária que se instalou é agravada pela fragilidade das instituições públicas, pela escassez de serviços sociais básicos e por um sentimento generalizado de abandono por parte do Estado.

As causas da insurgência não podem ser compreendidas apenas à luz do fundamentalismo religioso. Na verdade, Cabo Delgado é uma província marcada por desigualdades profundas e históricas. Apesar de ser uma das regiões mais ricas em recursos naturais do país, com descobertas de gás natural de classe mundial, além da exploração de rubis, grafite e madeira preciosa, as populações locais continuam a viver em condições de extrema pobreza, sem acesso a educação de qualidade, cuidados de saúde adequados ou oportunidades económicas reais. Essa contradição escancarada entre riqueza potencial e miséria quotidiana alimenta o ressentimento e fornece terreno fértil para o recrutamento de jovens por parte dos insurgentes.

A insurgência, neste sentido, também pode ser lida como uma forma de contestação social violenta, ainda que trágica, à exclusão sistemática imposta por um modelo de desenvolvimento que favorece as elites político-económicas e ignora as aspirações das comunidades locais. A retórica radical islamita serve, muitas vezes, como uma narrativa instrumental que canaliza frustrações acumuladas em zonas historicamente negligenciadas pelo Estado moçambicano. Não se trata apenas de uma guerra religiosa, mas também de uma guerra contra a marginalização e pela sobrevivência.

Outro factor que intensifica a complexidade do conflito é a chamada “maldição dos recursos naturais”, um conceito amplamente explorado pelo economista Paul Collier em sua obra “The Bottom Billion”. Segundo Collier, países pobres com grandes reservas de recursos naturais são mais propensos a conflitos internos, precisamente porque os recursos se tornam alvo de disputa entre grupos armados, elites corruptas e interesses estrangeiros. Moçambique parece encaixar-se perfeitamente neste padrão. A exploração do gás natural em Cabo Delgado, liderada por multinacionais como a Total Energies, gerou expectativas de lucros bilionários, mas também levou ao deslocamento forçado de comunidades inteiras e ao agravamento das tensões sociais locais.

Nesse contexto, a insurgência acaba sendo alimentada por um conjunto de factores interligados: exclusão social, promessas económicas não cumpridas, ausência do Estado e uma elite governante que parece mais preocupada em proteger os interesses de investidores estrangeiros do que em garantir o bem-estar dos seus próprios cidadãos.

A resposta do Estado moçambicano ao conflito também tem sido alvo de críticas. Em vez de apostar numa solução política e social para o problema, o governo optou por uma estratégia militar, que incluiu a contratação de forças estrangeiras. Entre estas, destacam-se as tropas do Ruanda, cuja presença tem levantado questões sobre a soberania nacional, a falta de transparência nos acordos firmados e a verdadeira motivação por trás da sua intervenção. Embora estas forças tenham conseguido reconquistar algumas zonas estratégicas, a paz duradoura ainda está longe de ser alcançada.

A presença ruandesa, para muitos, não passa de um modelo de “segurança contratada”, uma espécie de mercenários. O governo moçambicano não prestou contas públicas detalhadas sobre os termos dessa parceria, e tampouco se conhece o verdadeiro custo, político e económico, da mesma. A dependência de forças estrangeiras não só enfraquece a capacidade das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique, como também pode alimentar o sentimento de ocupação entre a população local, dificultando ainda mais a reconciliação e a construção da confiança.

O prolongamento do conflito beneficia certos sectores. A guerra tornou-se, para alguns, uma fonte de lucro e poder. Desde empresas de segurança privada, atores políticos que capitalizam o discurso antiterrorista, até redes de contrabando e tráfico que operam sob o manto da instabilidade, há um ecossistema inteiro que se beneficia da continuação das hostilidades. Nesta teia de interesses, a paz é, paradoxalmente, uma ameaça.

É urgente, portanto, repensar a estratégia de resolução do conflito em Cabo Delgado. A paz duradoura não será conquistada apenas com armas. É necessário um plano abrangente que inclua reconciliação social, justiça para as vítimas, reintegração dos deslocados, combate à pobreza, inclusão juvenil e uma revisão profunda da forma como os recursos naturais são geridos. É imperioso garantir que as comunidades locais participem activamente das decisões sobre o seu território e se beneficiem, de forma equitativa, da exploração dos recursos.

Também é fundamental garantir a responsabilização dos atores envolvidos, tanto internos quanto externos. A transparência na gestão dos acordos com empresas multinacionais, na presença de tropas estrangeiras e na alocação dos fundos de reconstrução é uma condição indispensável para restaurar a confiança no Estado.

O conflito em Cabo Delgado é, em última instância, um espelho que reflecte os limites do actual modelo de desenvolvimento de Moçambique. Um modelo que prioriza o capital sobre as pessoas, que negocia com o exterior enquanto vira as costas às suas próprias comunidades. Sair dessa armadilha exige coragem política, vontade de romper com práticas predatórias e compromisso com um futuro onde a riqueza do país não seja maldição, mas oportunidade para todos.

2025/12/3