Alípio Freeman"
Em tempos de fractura institucional profunda e descrença generalizada no sistema democrático, a decisão do Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos de reprovar o nome “Anamalala” como designação do novo partido político de Venâncio Mondlane, levanta sérias e graves questões. Não apenas por sua natureza jurídica duvidosa, mas pelo simbolismo de um Estado que, sob a capa da legalidade, parece embarcar em mais um episódio de exclusão e manipulação política.
O argumento invocado pelas autoridades para justificar a reprovação é que o nome "Anamalala", sendo uma expressão em língua moçambicana (macua), fere o princípio da unidade nacional, podendo fomentar divisionismo. Ora, essa posição não resiste à mais básica análise constitucional e revela contradições embaraçosas, senão perigosas. Entretanto, não percamos de vista que a expressão ANAMALALA deu voz a luta pela justiça eleitoral naquele que pode ser visto como o pós eleitoral mais violento e mortal, e que por via disto compreende- se que o regime do dia não se sinta confortável em o homologar o que se compreende quando aceitamos que estamos num sistema democrático mesclado com pedaços de autoritarismo cujas características são sobejamente conhecidas pelos moçambicanos.
A Constituição da República de Moçambique, no seu artigo 9.º, consagra o princípio da unidade nacional, mas fá-lo na perspectiva da inclusão, da valorização da diversidade e do respeito pela pluralidade cultural e linguística do país. Mais ainda, o artigo 118.º da mesma Constituição reconhece explicitamente a importância das línguas moçambicanas e encoraja o seu uso e valorização no espaço público. Rejeitar um nome por estar em língua moçambicana é, portanto, uma violação directa deste princípio, e constitui uma afronta ao espírito multicultural do Estado moçambicano.
É um paradoxo que, num país onde se clama pela descentralização e pela inclusão regional, um partido cujo nome honra uma identidade linguística local seja considerado ameaça à unidade nacional. É ainda mais curioso — ou revelador — o facto de o próprio proponente, Venâncio Mondlane, ser do sul, enquanto o nome é de origem do norte, evidenciando um esforço concreto de união simbólica entre as regiões historicamente marginalizadas.
Segundo o processo habitual, os proponentes de um partido político iniciam pela reserva do nome, junto às autoridades competentes. E, segundo relatos públicos, o nome “Anamalala” havia sido previamente aceite aquando da sua reserva. Então, como se justifica que, depois da entrega de toda a documentação exigida, com milhares de assinaturas recolhidas, o nome seja reprovado? O timing da decisão é altamente questionável e parece servir a um propósito que vai muito além do cumprimento da lei.
Esta prática administrativa, de aprovar primeiro para reprovar depois, só pode ser interpretada como uma armadilha política, uma tacada que evidencia o medo que se tem pelo diferente num regime que se pretende plural. Num contexto em que o espaço democrático se encontra cada vez mais sufocado, a rejeição do nome parece ter menos a ver com a Constituição e mais a ver com medo. Medo de uma nova força política que, legitimamente, desafia o status quo.
Não se pode ignorar o facto perturbador de que o actual Ministro da Justiça foi um dos juízes do Conselho Constitucional que homologou os resultados eleitorais de 2023, mesmo diante de múltiplas denúncias de fraude, desaparecimento de votos e falsificação de editais. Esse mesmo indivíduo, agora no Executivo, tem o poder de aprovar ou reprovar a criação de novos partidos uma acumulação de funções que deveria causar escândalo numa república que se pretende democrática.
Como confiar nas motivações de alguém que, primeiro, foi juiz numa das decisões mais controversas da história eleitoral recente, e agora aparece como agente do Executivo a travar o surgimento de alternativas políticas reais? Que agenda serve? Que interesses defende? E a quem teme?
Estas questões parecem retóricas, mas demonstram em grande escala o tipo de dirigentes que temos, a forma como os poderes são controlados pelo partido no poder o que em última analise catalisa a desconfiança visceral que a sociedade desenvolveu sobre os procedimentos e instituições políticas nacionais.
O Presidente da República tem repetidamente apelado à tolerância, ao diálogo e à reconciliação, numa tentativa de sarar as feridas abertas pelas eleições de 2023. Contudo, decisões como a reprovação do nome “Anamalala” colocam em xeque qualquer discurso de paz e reabertura. Que reconciliação se pretende quando se negam os instrumentos básicos da participação política a um cidadão que tem procurado, por meios legais e pacíficos, colocar-se ao serviço da democracia?
Este acto não é apenas um atentado contra Mondlane ou os seus apoiantes. É uma mensagem clara: o sistema tem medo de quem o desafia pelas vias legais. A reprovação de “Anamalala” deve ser lida como um sintoma da fragilidade de uma elite política que, em vez de competir no terreno das ideias, prefere instrumentalizar o aparelho do Estado para excluir e silenciar.
O episódio “Anamalala” não é um caso administrativo. É uma declaração política. É mais um capítulo de uma democracia que se recusa a amadurecer, que usa os mecanismos do Estado para proteger interesses privados. Se a Constituição vale de fato para todos, então a pluralidade linguística deve ser celebrada, não censurada. E se o país quer curar as feridas do pós-eleitoral, precisa antes deixar de reabri-las com actos de exclusão e manipulação.
A violência quer simbólica, quer física, não pode garantir a sustentabilidade de um governo a longo prazo.
O nome “Anamalala” pode ter sido rejeitado, mas a ideia que ele representa já está entre as pessoas que acreditam nesse projecto, o de uma Moçambique que não tem medo da sua diversidade, que abraça os seus povos e que exige, com firmeza, a devolução da sua democracia. E contra essa ideia, nenhum despacho poderá vencer.
2025/12/3
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