
Alípio Freeman "
O ano que finda não consente silêncio, nem neutralidade cómoda, nem discursos mornos que tentam anestesiar consciências. Em Moçambique, o encerramento do calendário civil coincide com a necessidade imperiosa de um balanço moral, político e social profundo, porque este foi mais um ano em que o país caminhou à deriva, carregando feridas abertas, dores não saradas e uma esperança cada vez mais cansada. Este texto é escrito por ocasião do final do ano e do Natal, não como celebração vazia, mas como resenha crítica de um país ferido, exausto e, ainda assim, resistente.
A confirmação da farsa eleitoral marcou de forma indelével o início do ano, consolidando a ruptura entre governantes e governados e aprofundando a desconfiança colectiva. Um processo amplamente contestado abriu caminho à ascensão ao poder de mais um presidente percebido, por largos sectores da sociedade, como politicamente ilegítimo. Um poder erguido sob repressão violenta, baptizado com o sangue de centenas de inocentes que se recusaram a aceitar o embuste, não poderia inaugurar-se com gestos de humildade, reconciliação ou sentido de Estado. O que se seguiu foi previsível: arrogância visceral, distanciamento da dor real do povo e um discurso inflamado, mas pobre em acções concretas.
O medo e a raiva prolongaram-se ao longo do ano como um estado quase permanente. A desconfiança mútua enraizou-se, contaminou as relações sociais, envenenou o debate público e empurrou a sociedade para uma polarização perigosa. Moçambique vive hoje num ambiente de tensão constante, semelhante a um barril de pólvora, onde a paz social é apenas aparente e o diálogo, tantas vezes proclamado, raramente se pratica com verdade e honestidade.
O presidente segue o seu percurso sem destino político claro, alternando declarações ousadas com promessas que raramente se materializam em decisões firmes ou reformas estruturais capazes de aliviar o sofrimento colectivo. As palavras não encontram correspondência na acção governativa, enquanto os recursos públicos continuam a ser consumidos em viagens dispendiosas, comitivas extensas e agendas externas difíceis de justificar num país onde milhões lutam diariamente pela sobrevivência.
No plano económico, a realidade é dura e implacável. Os salários chegam a conta-gotas, a incerteza instala-se nos lares e o desemprego alastra de forma silenciosa, mas devastadora. Empresas e multinacionais históricas encerram portas, lançando milhares de trabalhadores no abandono. O custo de vida sobe, a moeda enfraquece e o futuro transforma-se, para muitos, num exercício permanente de resistência e improviso.
A academia, que deveria ser consciência crítica da nação, apresenta-se profundamente dividida. Há académicos que colocam o saber ao serviço do poder, optando pela bajulação em detrimento da fiscalização, pelos interesses económicos em detrimento da ética, contribuindo assim para a banalização do debate de ideias. Quando doutores se transformam em amigos da corte, o conhecimento deixa de libertar e passa a legitimar a opressão, empobrecendo o espaço público e fragilizando o próprio Estado.
Em Cabo Delgado, a tragédia continua envolta em silêncios estratégicos e convenientes. Após anos de conflito, permanece a incapacidade ou a falta de vontade política de apresentar uma leitura clara sobre a natureza da guerra, os seus actores, financiadores e beneficiários. As matanças brutais, os deslocamentos forçados e a destruição sistemática de comunidades inteiras configuram crimes contra a humanidade tratados com indiferença, enquanto se pede ao país que “reduza a narrativa” para não assustar investidores.
Enquanto o sangue corre, os recursos naturais seguem o seu caminho. Rubis, gás e outras riquezas alimentam interesses globais num sistema organizado, perverso e sistémico, onde a barbárie é financiada e normalizada. Dizer que falar da guerra afasta investimentos significa, na prática, exigir silêncio enquanto irmãos morrem numa guerra que oficialmente parece não existir.
Moçambique encontra-se fragmentado. O norte vive anestesiado pelo medo e pelo abandono, o centro resiste graças à seriedade e pujança de algumas lideranças locais, enquanto a liderança nacional continua a falhar na construção de um projecto inclusivo e coerente. A Estrada Nacional Número Um, transformada em ruína e em verdadeiro cemitério de sonhos, simboliza a negligência estrutural do Estado e a indiferença perante mortes evitáveis, num país cuja topografia nunca foi obstáculo real à sua manutenção.
As instituições revelam um desgaste profundo e perigoso: corrupção sem responsabilização, justiça selectiva, reformas anunciadas que nunca se concretizam e propaganda confundida com governação. A juventude, maioritária no país, oscila entre a revolta, a frustração e a fuga, num Estado incapaz de oferecer horizontes claros e dignos.
É impossível encerrar o ano sem mencionar os desaparecidos da luta pós-eleitoral, cidadãos cujo paradeiro permanece desconhecido, deixando famílias suspensas entre a esperança e o luto permanente. O desaparecimento, até hoje inexplicável, do jornalista e activista Arlindo Chisale permanece como uma ferida aberta na consciência nacional e como símbolo da ausência de verdade, transparência e justiça.
Milhares de manifestantes, entusiastas e filhos desta terra perderam a vida simplesmente por exigirem mudanças, respeito pela vontade popular e a verdade dos factos. Estas mortes não podem ser varridas para debaixo de mesas de diálogo estéreis, nem silenciadas por discursos vazios de reconciliação que ignoram a dor real dos que ficaram para trás.
Se de facto almejamos a reconciliação como povo, é imperativo olhar para estas famílias, reconhecer a sua dor, esclarecer os desaparecimentos e prestar apoio material, psicológico e moral a quem perdeu filhos, pais e irmãos. Não haverá diálogo verdadeiro enquanto não houver aproximação sincera com aqueles que estão feridos na alma e abandonados pelo Estado. A reconciliação não se decreta; constrói-se com verdade, justiça e humanidade.
Na saúde faltam medicamentos, na educação faltam condições, no campo faltam políticas sérias e sustentáveis. Este é o retrato cru de um ano em que a promessa superou largamente a entrega e em que o Natal surge mais como apelo à consciência do que como celebração plena.
Ainda assim, Moçambique resiste. Há cidadãos que recusam o silêncio, jornalistas persistentes, líderes comunitários comprometidos e vozes que continuam a denunciar. A Pérola do Índico está ferida, profundamente marcada, mas não está morta.
Neste Natal, o pedido é simples e profundamente humano: que se invista em medicamentos e não em armas, que se priorize a vida e não a guerra, que se olhe para os pobres desgraçados que não têm o que comer e que se governe com verdade, responsabilidade histórica e respeito pela dignidade humana.
2025/12/3
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