Alípio Freeman"
Quando Moçambique celebra os 50 anos da sua independência, em 25 de Junho de 2025, há uma sombra que paira sobre as comemorações oficiais, mostrando a penumbra entre o desencanto e a frustração e da indignação colectiva ofuscada por um silencio gritante manifesto no semblante de cada desgraçado que deambula pelas avenidas, pelos bairros, pelos corredores de instituições publicas, nos quartéis e esquadras desta bela e partida pátria. Não se trata apenas do peso da pobreza extrema, da desigualdade abismal ou da corrupção sistémica. Trata-se de uma ferida mais profunda, da manipulação da memória histórica, a apropriação simbólica do passado glorioso por uma elite dirigente que se afasta, dia após dia, dos ideais pelos quais se fez a luta armada de libertação nacional. A FRELIMO, partido que liderou a libertação, tornou-se ao longo destas cinco décadas não só no guardião oficial da independência, mas também na única intérprete legítima da história do país. Apropriou-se do 25 de Junho como se a independência fosse um bem privado, um feito de partido e não um feito do povo. As cerimonias oficiais, os discursos repetitivos, as homenagens ritualizadas e o controlo absoluto dos símbolos nacionais funcionam como instrumentos de legitimação de um poder cada vez mais contestado. A data é usada para reavivar a “memória heróica”, na tentativa de restaurar a hegemonia ideológica do partido num momento em que a realidade impõe uma desconstrução do mito fundador. Durante décadas, a FRELIMO construiu uma narrativa política baseada no monopólio da memória: ela libertou o povo, portanto, deve governar eternamente. Mas os símbolos revolucionários que outrora inflamavam corações e mobilizavam massas tornaram-se obsoletos. Já não despertam paixão , apenas cansaço e desespero. A bandeira, o hino, os murais pintados de vermelho e os nomes de avenidas são recordações fossilizadas que já não correspondem ao presente de um país maioritariamente jovem, cuja pirâmide etária mostra que mais de 65% da população tem menos de 25 anos e não viveu a guerra de libertação. Esses jovens não se identificam com um passado do qual não participaram, mas sofrem no presente construído por aqueles que o reclamam como título de nobreza. O projecto de forjar uma mente revolucionária foi eficaz num momento histórico em que havia um inimigo externo claro, o colonialismo e um ideal de nação por construir. Agora os ensaios revolucionários são vozes que se levantam contra os revolucionários de outrora, questionando de forma incisiva a sua importância histórica, comparando- os ao colono, desprezando seu papel histórico, acusando os pela culpa da desgraça colectiva. Não há dúvida, que hoje o maior inimigo da juventude moçambicana não é um império distante, mas sim a exclusão, a fome, o desemprego, o abandono do Estado e a arrogância de uma elite que se diz libertadora. O uso reiterado dos símbolos da luta como escudo de legitimidade demonstra em grande medida a visão turva que as elites do partido no poder tem em relação ao desenvolvimento do país. Estes tornaram-se ferramentas de opressão simbólica, e não de inspiração. Outro erro não foi apenas manter-se no poder por cinco décadas , foi transformar o poder numa doutrina de culto e bajulação. A lógica da obediência cega substituiu a lógica da reflexão crítica. Os ideólogos que outrora formulavam o pensamento transformador , como Eduardo Mondlane e Uria Simango, foram silenciados, marginalizados ou distorcidos. O espaço para a construção de pensamento desapareceu, e em seu lugar cresceu uma cultura de adulação em que se recompensa o elogio e se pune o questionamento. A consequência é um Estado intelectualmente atrofiado, que não pensa, não planeia, apenas reage. Os ideais de justiça, igualdade e solidariedade, pilares da luta de libertação, deram lugar à lógica do saque. Os quadros preocupados com a transmissão da consciência política foram empurrados para os bastidores, enquanto os arrivistas tomaram os palcos. O Estado moçambicano tornou-se uma ferramenta de enriquecimento pessoal e de reprodução de elites, e não de transformação social. A ausência de entusiasmo popular nas comemorações do 25 de Junho de 2025 é sintomática. Não se vê mais a multidão alegre nas praças, as crianças com bandeirinhas na mão, os músicos populares a cantar a liberdade. A azáfama que outrora caracterizava a data deu lugar a uma indiferença amarga. A razão é simples: o povo sente que foi traído. As feridas abertas pela FRELIMO em diversos segmentos da população continuam sangrando. Famílias que sofreram perseguições durante as purgas pós-independência, comunidades marginalizadas por projectos de exploração de recursos naturais, jovens frustrados por um sistema que lhes nega futuro — todos esses já não se emocionam com a retórica da libertação. Sentem-se usados, descartados, enganados. A glorificação de certos heróis da luta começa a ser contestada por vozes que exigem uma reclassificação honesta da história. Como aceitar que figuras que hoje são associadas a escândalos de corrupção sejam ainda tratadas como salvadores da pátria? A pergunta torna-se inevitável: que heróis são esses que roubaram metade da riqueza do país? Como é possível continuar a chamá-los de libertadores quando a sua obra mais visível é o empobrecimento sistemático do povo? Os que se proclamavam socialistas radicais, defensores dos oprimidos, tornaram-se capitalistas milionários, donos de bancos, fazendas, empresas mineiras, redes de logística e até universidades privadas. Enriqueceram através de contratos públicos viciados, tráfico de influência e desvio de fundos. A transição do socialismo revolucionário ao capitalismo predador foi feita sem qualquer prestação de contas. Enquanto isso, o povo mergulhou na pobreza extrema, com escolas sem carteiras, hospitais sem medicamentos, bairros sem saneamento. O país, riquíssimo em recursos naturais, tornou-se um dos mais pobres do mundo. Esta contradição é insuportável: os que prometeram a libertação são os que mais oprimem. Os que diziam lutar contra a exploração são hoje os grandes exploradores. Como pode o povo confiar que os que o empobreceram sejam os mesmos a tirá-lo da miséria? Diante deste percurso penoso, a decisão de afastar a FRELIMO do poder já não é uma questão de ideologia — é uma questão de sobrevivência nacional. Trata-se do ato mais racional que um povo empobrecido pode tomar. A alternância política não é apenas desejável, é necessária para a renovação da esperança, para reconstruir a fé na democracia, para interromper o ciclo de impunidade e reaproximar o Estado do povo. A mudança de governo já não é uma escolha arriscada , é a única escolha lógica. Continuar a confiar num partido que falhou por cinco décadas é aceitar a perpetuação da tragédia. O 25 de Junho deixou de ser um símbolo de libertação. Tornou-se uma data capturada por um partido em crise, que tenta reciclar glórias passadas para justificar abusos presentes. A memória histórica precisa ser resgatada do monopólio da FRELIMO e devolvida ao povo moçambicano. Precisamos reescrever a nossa história com honestidade, reavaliar os nossos heróis com critérios éticos e reconstruir o Estado sobre novas bases de justiça e dignidade. Os 50 anos de independência não devem ser celebrados com aplausos forçados, mas sim com reflexão, coragem e um compromisso inabalável com a mudança. Porque o verdadeiro herói é aquele que serve o povo, e não aquele que se serve dele.
2025/12/3
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