Afonso Almeida Brandão"
O recente descrédito do Governo de Daniel Chapo, de Ministros, de Secretários de Estado e de Autarcas da FRELIMO a nível nacional, é apenas um sintoma de um problema estrutural mais profundo: a ausência de uma estratégia nacional clara e consistente para o desenvolvimento de Moçambique. Um exemplo revelador é o caso do Ministro da Saúde, Hilário Ussene Isse, que aprovou o apoio de 2.249.216,00 dólares norte-americanos à empresa CLINICARE, da qual foi funcionário antes de ser nomeado ministro. Este acto levanta sérias preocupações não apenas sobre a idoneidade da decisão, mas também sobre os critérios utilizados pelo Governo na definição de prioridades de investimento público no sector da saúde.
A reportagem publicada pelo Semanário Evidências na semana passada lança luz sobre este caso, trazendo à tona questões graves de possível conflito de interesses e gestão danosa dos recursos do Estado. Segundo a investigação jornalística, a escolha da CLINICARE não obedeceu aos princípios da concorrência leal e da transparência, tendo ignorado a orientação do Presidente da República no sentido de evitar gastos excessivos e práticas que possam configurar favorecimento indevido. Para além disso, o Ministério da Saúde ignorou outros cinco concorrentes elegíveis, favorecendo deliberadamente a CLINICARE, empresa pertencente à ECOMED e com ligações ao próprio Ministro, cujo envolvimento ainda está sob investigação. Este episódio reproduz práticas de nepotismo e clientelismo que têm marcado os anteriores governos da FRELIMO, evidenciando que o partido não mudou de postura face ao uso dos recursos públicos em benefício próprio. O episódio suscita dúvidas legítimas sobre a conduta do Ministro da Saúde, num contexto em que a ética e o rigor na gestão pública deveriam ser intransigentes.
Para além das questões éticas e legais, este caso evidencia uma falha sistémica: a inexistência de um plano estruturado como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que pudesse guiar as decisões governamentais com base em metas claras e mensuráveis. A ausência de uma estratégia nacional coerente tem permitido que decisões sejam tomadas de forma casuística, frequentemente orientadas por interesses pessoais ou corporativos, em detrimento do interesse público.
O episódio remete-nos para uma reflexão mais abrangente sobre o papel da estratégia no desenvolvimento dos países. Em 1994, tive a oportunidade de visitar o Japão, onde tomei conhecimento da estratégia nacional delineada em 1946 e reformulada em 1956, que priorizava a tecnologia e a inovação como motores do progresso. Essa visão estratégica foi fundamental para a rápida recuperação e ascensão económica do Japão no pós-guerra.
Inspirado por esse exemplo, tentei durante anos promover a adopção de uma abordagem semelhante junto do Governo moçambicano e em diversas instâncias em Portugal, incluindo congressos partidários e a SEDES. Através da Associação Industrial Portuguesa (AIP), com o apoio do Professor Veiga Simão e do Dr. Jaime Lacerda, foi elaborada a Carta Magna da Competitividade em 2003, que propunha uma visão de desenvolvimento baseada na qualificação do capital humano, na produção científica e tecnológica, e no acesso eficiente às redes de comunicação e transporte.
Infelizmente, tanto em Portugal como em Moçambique, essa visão estratégica nunca foi implementada com o rigor necessário. Em Portugal, o PRR tem sido criticado por ser uma colcha de retalhos, com investimentos dispersos e por vezes contraditórios. A aposta no hidrogénio e em iniciativas ambientais sem base estruturante levanta dúvidas sobre a coerência do plano. O turismo, que cresce de forma natural, continua a receber apoios enquanto sectores com maior potencial de transformação económica são negligenciados.
Em Moçambique, o cenário é igualmente desolador. Apesar de o novo Governo da FRELIMO ter tomado posse há poucos meses, ainda não apresentou medidas concretas que sinalizem uma ruptura com o passado ou um compromisso real com o desenvolvimento estruturado. A prática tem sido de avanços tímidos seguidos de recuos significativos, sem um rumo definido.
Voltando a Portugal, o sistema educativo continua em crise, e a mobilidade ferroviária mantém o país isolado no contexto europeu, apesar dos apoios disponíveis. As telecomunicações evoluíram graças a iniciativas passadas, mas os demais sectores estruturantes continuam estagnados. Em Moçambique, os baixos salários e a precariedade laboral persistem como obstáculos ao progresso económico e social.
Neste contexto, a verdadeira questão estratégica é saber se o país deve apostar na educação, na ciência, na inovação e na indústria exportadora, ou continuar a depender de sectores frágeis como o turismo, que gera empregos de baixa qualificação e com pouca sustentabilidade. Esta escolha estratégica foi ignorada por sucessivos governos, tanto em Portugal como em Moçambique.
Em Portugal, o governo liderado por António Costa optou por uma agenda de comunicação e propaganda em torno do PRR, mas sem garantir massa crítica para mudanças estruturais. Em Moçambique, os governantes continuam a privilegiar as viagens protocolares e os encontros simbólicos, sem apresentar resultados tangíveis. Como salientou o jornalista Salomão Moyana num recente programa na MBC-RT, a classe dirigente moçambicana parece mais interessada em seguir o Presidente nas suas deslocações do que em governar com seriedade.
Se os meios de comunicação social tivessem desempenhado o seu papel de forma mais assertiva, poderiam ter evidenciado a desconexão entre os financiamentos captados e a ausência de uma visão de desenvolvimento integrada. Trata-se, em ambos os países, de uma sucessão de decisões avulsas, sem o necessário encadeamento estratégico capaz de provocar mudanças significativas e sustentáveis.
Como observou com perspicácia a jornalista Helena Matos em Lisboa, e reiterou Salomão Moyana em Maputo, os dirigentes habituados a uma cultura de privilégios não compreendem por que razão actos de favorecimento, que para eles são prática corrente, causam escândalo na opinião pública. De igual modo, levanta-se a interrogação sobre a origem do património do Ministro da Saúde, Hilário Ussene Isse, considerando a sua origem modesta, o que reforça a necessidade de um esclarecimento cabal e de uma investigação rigorosa.
Em suma, o problema de fundo continua a ser a falta de uma visão estratégica clara e partilhada para o futuro de Moçambique e de Portugal. Sem essa base, qualquer esforço de desenvolvimento estará condenado à dispersão, à ineficácia e, no pior dos cenários, à captura por interesses que não servem o bem comum
2025/12/3
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